Foi conta para todo canto. Religião em todos os cantos da música popular brasileira
 
 

O envolvimento da geração de artistas nos anos de 1970 e 1980 com os cultos afro constituiu uma importante referência para estas religiões, valorizando-as também como precioso elemento do patrimônio simbólico da música popular brasileira. Disseminada por todo o país, essa música foi consumida por diferentes classes sociais. Não obstante, muito mais como “cultura brasileira” do que como mensagens ou símbolos sagrados de alguma religião específica. Foi sobre essa base que, nas décadas seguintes, os mais diferentes compositores e intérpretes, com os mais diferentes estilos e propostas musicais, puderam incorporar ao seu repertório essas mesmas referências.
 
 

Na Bahia, por exemplo, essa tendência se radicalizou, com os blocos afro alcançando visibilidade nacional e internacional. Em Salvador, blocos como Ilê Aiyê, fundado em 1974 no bairro do Curuzu-Liberdade; Olodum, fundado em 1979 pelos moradores do Maciel-Pelourinho  e AraketuEm iorubá, Ylê Aiyê significa Casa dos vivos ou Mundo dos homens; Olodum: Deus maior e Araketu: Povo de Ketu., fundado em 1989 no bairro de Periperi, entre outros, gravaram discos em que a África e o candomblé foram inspirações fortes em torno das quais se buscou construir a identidade da população negra no Brasil. A relação destes blocos com as comunidades de terreiro se evidenciaram logo de início. O Ilê Aiyê, por exemplo, teve como fundadores os membros do terreiro Ilê Axê Jitolu de mãe Hilda dos Santos. 
 
 

No contexto desse movimento surgiu um estilo jocosamente apelidado de “axé music” em razão das influências iniciais que recebeu dos ritmos e coreografias dos terreiros e da música pop de forte apelo comercial. O termo “axé” também se refere ao fato deste tipo de música ter surgido na Bahia e ser, inicialmente, produzida e consumida no período do carnaval e pela população negra e mestiça localSobre esse processo, veja Sansone e Santos, 1998; Guerreiro,2000
 
 
 

Os grupos de afoxés também tiveram forte presença no carnaval baiano popularizando as cantigas e os ritmos de terreiro executados durante seus cortejos pelas ruas. O mais popular deles, o Filhos de Gandhi, cuja sede  se localiza no Pelourinho, em Salvador, surgiu no final dos anos de 1940 mas ganhou evidência na década de 1970 quando, após um período de fechamento, obteve o apoio de religiosos, como Camafeu de Oxóssi, radialistas e artistas para retomar suas atividades. Nesse processo, o cantor Gilberto Gil  também colaborou filiando-se ao afoxé e dedicando-lhe a música "Filhos de Gandhi". Referências a esse afoxé aparecem, ainda, em inúmeras canções, como em "Ijexá (Filhos de Gandhi)", composta por Edil Pacheco e cantada por Clara Nunes em 1982. Nesta letra, outros afoxés e blocos afros são mencionados. O título refere-se ao ritmo ijexá, dedicado principalmente à Oxum e Oxalá nos terreiros e preferido pelos afoxés por seu andamento lento e cadenciado.
 
 


 
Filhos de Gandhi, Badauê 
Ylê Aiyê, Malê Debalê, Otum Obá
Tem um mistério
Que bate no coração
Força de uma canção
Que tem o dom de encantar

Seu brilho parece
Um sol derramado
Um céu prateado
Um mar de estrelas

Revela a leveza 
De um povo sofrido
De rara beleza 
Que vive cantando
Profunda grandeza

A sua riqueza
Vem lá do passado
De lá do congado
Eu tenho certeza

Filhas de Gandhi
Ê povo grande
Ojuladê, Katendê, Babá Obá
Netos de Gandhi
Povo de Zambi
Traz pra você
Um novo som: Ijexá

 Os blocos afro e afoxés, embora sejam organizações artísticas de caráter lúdico e profano, mantêm com os terreiros relações de afinidade e proximidade, muitos tendo surgido no âmbito destes, como no caso do Ilê Aiyê mencionado acima. Por isso, a influência de ritmos e as referências às cantigas dos terreiros são bastante perceptíveis na produção musical destes grupos. A realização de rituais propiciatórios (como o padê de Exu) antes dos desfiles pelas ruas também indica a sobreposição dos domínios do sagrado e do profano nas atividades dos grupos.
 
 
 

Na música pop são incontáveis os exemplos de artistas que insrem referências religiosas afrobrasileiras na construção de seus repertórios, como Fátima Guedes, Fernanda Abreu, Carlinhos Brown, Marisa Monte, Adriana Calcanhoto, Zeca Baleiro, Rita Ribeiro e Chico César, entre muitos outros. Marisa Monte, por exemplo, regravou um grande sucesso de 1976, “Lenda das Sereias, Rainhas do Mar” (de Vicente, Dionel e Veloso), enredo da Escola de Samba Império Serrano cuja letra saúda os vários avatares das entidades associadas às águas:
 

 

Oguntê, Marabô
Caiala e Sobá
Oloxum, Ynaê
Janaina e Iemanjá
São rainhas do mar
O mar, misterioso mar
Que vem do horizonte 
É o berço das sereias
Lendário e fascinante
Olha o canto da sereia 
Iara ô, Okê,Iyaloá
Em noite de lua cheia 
Ouço a sereia cantar
E o luar sorrindo 
Então se encanta 
Com a doce melodia 
Os madrigais vão despertar 
Ela mora no mar 
Ela brinca na areia 
No balanço das ondas 
A paz ela semeia 
E quem é? 
Oguntê, Marabô
Caiala e Sobá
Oloxum, Ynaê
Janaina e Iemanjá

 Outro exemplo dessa inserção da afrorreligiosidade na música popular brasileira reside no CD "Tecnomacumba", uma reedição do hit-parade afrotemático dos anos de 1970 e 1980 pela cantora maranhense Rita Ribeiro. Nele, músicas sobre o tema das religiões afrobrasileiras e cantigas de terreiro foram interpretadas com arranjos de música pop e eletrônica. A sequência das faixas remete à sequência de saudação dos orixás no candomblé (xirê). A primeira, "Saudação-Abertura" saúda Exu (seguindo o preceito destas religiões que recomenda a louvação desse orixá em primeiro lugar) e invoca as principais entidades do panteão afrobrasileiro. A última, "Canto para Oxalá", canta esse orixá da Criação,  sempre saudado no final, encerrando o ciclo de cerimônias. Nas outras faixas, orixás e entidades são cantados. Há regravações de "Domingo 23" (de Jorge Benjor), dedicada à São Jorge e com saudações à Ogum;  "Cavaleiro de Aruanda" (gravada por Ronnie Von em referência a Oxóssi), "Babá Alapalá" (de Gilberto Gil em homenagem ao egungun de Xangô), "Oração ao Tempo" (de Caetano Veloso para o orixá que dá título à música), "Deusa dos Orixás" (de Toninho e Romildo, grande sucesso de Clara Nunes), "Iansã" (de Caetano Veloso e Gilberto Gil), "Cocada" (de Antonio Vieira), com a qual a cantora saúda Cosme e Damião (santos protetores das crianças), "Jurema" em homenagem aos caboclos, entre outras.  As cores, formas, adereços e outros elementos estéticos das religiões afrobrasileiras serviram de inspiração na concepção da capa, contracapa e encarte do CD. O destaque para o vermelho e marrom nos cabelos, fios de conta e tiara em forma de adé (coroa) que a cantora usa remete para as cores de Iansã e seu elemento natural: o fogo. E ao protótipo criado por Clara Nunes.
 
 
 
 
 

Mesmo os grupos de reggaerap,  geralmente envolvidos com a denúncia da violência e da injustiça social de que são vítimas as camadas mais pobres e negras da população, incorporaram o tema em suas composições. O grupo de reggae Cidade Negra, por exemplo, intitulou um de seus discos de “O erê”, nome genérico das divindades infantis que acompanham os orixás no candomblé e associadas a Cosme e Damião na umbanda.
 
 

Prá entender o Erê
Tem que tá moleque
Uh! Erê, Erê!
Tem que conquistar alguém
Que a consciência leve...

Há semanas
Em que tudo vem
Há semanas
Que é seca pura
Há selvagens
Que são do bem
Há sequência do filme muda...

Milhões de anos luz
Podem durar
O que alguns segundos
Na vida podem representar
O Erê, é a criança
Sincera, convicção
Fazendo a vida
Como o sol nos traz...

Você sabe
Que o sentimento não trai
Um bom sentimento não trai..

Prá entender o Erê
Tem que tá moleque
Uh! Erê, Erê!
Tem que conquistar alguém
Que a consciência leve...

Pare e pense
No que já se viu
Pense e sinta
O que já se fez
O mundo visto
De uma janela
Pelos olhos
De uma criança...

Milhões de anos-luz
Podem curar
O que alguns segundos
Na vida podem representar
O Erê, é a criança
Sincera, convicção
Fazendo a vida
Como o sol nos traz...

Você sabe
Que o sentimento não trai
Um bom sentimento não trai..


 
 

Mulheres em transe de erê no Santuário da Umbanda, São Paulo. Foto: Vagner Gonçalves da Silva







No Brasil, o rap  surgiu no início da década de 1980 e, como nos Estados Unidos, faz parte do movimento hip hop, formado por mais dois outros  elementos: a dança (break) e o grafite. Levado aos Estados Unidos por cantores jamaicanos, o rap (abreviatura de rythim and poetry) é uma espécie de "canto falado" que recupera dois valores de grande importância nas sociedades africanas: a oralidade e a música de percussão. Vale lembrar que inicialmente era sobre uma base percussiva que as letras eram "cantadas" (ou faladas). 
 
 
 

A religiosidade foi outro elemento aglutinador dos jovens negros e pobres incorporada às letras do rap. A primeira coletânea nacional de grupos de rap, "Cultura de Rua" (Selo Eldorado, 1988), já trazia referências às religiões afrobrasileiras, como a música de abertura “Corpo Fechado” da dupla  Thaíde e DJ Hum, pioneiros do movimento hiphop no Brasil
 
 
 

Me atire uma pedra
Que eu te atiro uma granada
Se tocar em minha face sua vida está selada
Portanto, meu amigo, pense bem no que fará
Porque eu não sei se outra chance você terá ...
Você não sabe de onde eu vim
E não sabe pra onde eu vou
Mais pra sua informação vou te falar quem eu sou
Meu nome é Thaíde
E não tenho R.G.
Não tenho C.I.C.
Perdi a profissional
Nasci numa favela
De parto natural
Numa sexta-feira
Cinco que chovia
Pra valer
Os demônios me protejem e os deuses também
Ogum, Iemanjá e outros santos do além
Eu já te disse o meu nome
Meu nome é Thaíde
Meu corpo é fechado e não aceita revide,
Thaíde...
Na 43 eu escrevi o meu nome numa cela
Queimei um camburão
Que desceu na favela
Em briga de rua já quebraram meu nariz
Não há nada nesta vida que eu já não fiz
Vivo nas ruas com minha liberdade
Fugi da escola com 10 anos de idade
As ruas da cidade foram minha educação
A minha lei sempre foi a lei do cão
Não me arrependo de nada que eu fiz
Saber que eu vou pro céu não me deixa feliz
E essa prece que tu rezas eu já muito rezei
E pro Deus que tu confessas eu já muito me expliquei
Thaíde...
Tenho o coração mole mas também sou vingativo
Por tanto pense bem se quer aprontar comigo
Se achas que esse neguinho sua bronca logo esquece
Então não perca tempo, pergunte a quem conhece
Eu só gosto de quem gosta de mim
Mas se for por meus amigos eu luto até o fim
Se mexer com a minha mãe
Meu DJ ou minha mina você pode estar ciente sua sorte está perdida
Pode demorar mas eu sempre pago minhas contas
Também não sou louco pra dar soco em faca de ponta
Sempre cobro as minha contas com juros e correção
16 toneladas eu seguro numa mão
Não nasci loirinho com o olho verdinho
Sou caboclinho comum, nada bonitinho
Feio e esperto com a cara de mal
Mas graças a Deus totalmente normal
E provar que sem a gente ninguém se mexe
Eu chamo DJ Hum junto com os seus scratches
Thaíde ...
Mas meu nome é Thaíde ...

 No CD "Preste Atenção" (1996), esses rappers agradecem a "Deus criador universal" e "aos orixás divindades da natureza".  Na faixa “Sr Tempo Bom”  relembram sua infância e adolescência elegendo entre as imagens marcantes as da cultura religiosa afrobrasileira. Essa cultura é apontada como fundamental na formação de sua visão de mundo e no fortalecimento de sua identidade, baseada na proteção dos ancestrais, sejam eles os deuses, heróis negros ou os pioneiros da cultura musical black em São Paulo:
 
 
 

Que saudade do meu tempo de criança,
Quando eu ainda era pura esperança,
Eu via nossa mãe voltando pra dentro do nosso barraco,
Com uma roupa de santo debaixo do braço.
Eu achava engraçado tudo aquilo,
Mas já respeitava o barulho do atabaque,
E não sei se você sabe, a força poderosa que tem na mão
De quem toca um toque caprichado, santo gosta.

Então me preparava pra seguir o meu caminho,
Protegido por meus ancestrais.
Antigamente o samba-rock, blackpower, soul,
Assim como o hip-hop era o nosso som,
A transa negra que rolava as bolachas,
A curtição do pedaço era o La Croachia,
Eu era pequeno e já filmava o movimento ao meu redor,
Coreografias, sabia de cor,

E fui crescendo rodeado pela cultura afrobrasileira,
Também sei que já fiz muita besteira,
Mas nunca me desliguei das minhas raízes,
Estou sempre junto dos blacks que ainda existem,
Me lembro muito bem do som e o passinho marcado
Eram mostrados por quem entende do assunto,
E lá estavam Nino Brown e Nelson Triunfo,
Juntamente com a Funkcia que maravilha.

Que tempo bom, que não volta nunca mais.

Calça boca de sino, cabelo black da hora,
Sapato era mocassim ou salto plataforma.
Gerson Quincombo mandava mensagens ao seus,
Toni Bizarro dizia com razão, vai com Deus,
Tim Maia falava que só queria chocolate,
Toni Tornado respondia: Podê Crê,
Lady Zu avisava, a noite vai chegar,

E com Totó inventou o samba soul,
Jorge Ben entregava com Cosa Nostra,
E ainda tinha o toque dos Originais,
Falador passa mal, rapaz,
Saudosa maloca, maloca querida,
Faz parte dos dias tristes e felizes da nossa vida.
Grandes festas no Palmeiras com a Chic Show,
Zimbabwe e Black Mad eram Company Soul,

Anos 80 começei a frequentar alguns bailes,
Ouvia comentários de lugares,
Clube da Cidade, Guilherme Jorge,
Clube Homes, Roller Super Star,
Jabaquarinha, Sasquachi, como é bom lembrar.

Agradeço a Deus por permitir
Que nos anos 70 eu pudesse assistir Vila Sézamo,
Numa década cheia de emoção,
Uri Gueler entortando garfos na televisão,
10 anos de swing e magia,
Que começou com o Brasil sendo tri-campeão.

Que tempo bom, que não volta nunca mais,

O tempo foi passando, eu me adaptando,
Aprendendo novas gírias, me malandreando,
Observando a evolução radical de meus irmãos,
Percebi o direito que temos como cidadão,
De dar importância a situação,
Protestando para que achemos uma solução.

Por isso Black Power continua vivo,
Só que de um jeito bem mais ofensivo,
Seja dançando break, ou um DJ no scratch,
Mesmo fazendo graffiti, ou cantando rap.
Lembra do função, que com gilette no bolso
Tirava o couro do banco do buzão,
Uma tremenda curtição,
E fazia na calça a famosa pizza.

No centro da cidade As Grandes Galerias,
Seus cabelereiros e lojas de disco,
Mantém a nossa tradição sempre viva.
Mudaram as músicas, mudaram as roupas,
Mas a juventude afro continua muito louca.
Falei do passado e é como se não fosse,
O que eu vejo a mesma determinação no Hip-Hop
Black Power de hoje.

Que tempo bom, que não volta nunca mais,
Essa é nossa homenagem, a todos aqueles,
Que fizeram parte ou curtiram Black Power.
Luiz Carlos, Africa São Paulo, Ademir Fórmula 1,
Kaskata's, Circuit Power, Bossa 1, Super Som 2000,
Transa Funk, Princesa Negra, Cash Box, Musícalia,
Galote, Black Music, Alcir Black Power,
E a tantos outros,Obrigado pela inspiração.Pode crê, pode crê.


 Na faixa  “Afro-brasileiro”, essas referências são ampliadas e ganham denotação política mais enfática. A identidade afrobrasileira é afirmada positivamente a partir de um conjunto de valores capazes de recuperar a integridade da cultura negra, entre eles a história de resistência e o papel da religião como reserva de força também política, capaz inclusive de reverter estereótipos (“gosto quando me chamam de macumbeiro”).

 
 

E aí, rapaziada, como é que tá? 
Estamos aqui de novo pra tentar fazer você dançar 
Como velhos tempos, tempos velhos, velhos quais 
Tempos velhos, meus amigos, pretos-velhos que não voltam mais 
Ancestrais seguidos de bravos guerreiros 
Faziam o Brasil inteiro se curvar diante de tal bravura 
Que loucura 
Só pra a todo custo defender aquele lugar 
Que aliás se chamava Palmares 

E foi destruído por um Velho que não era preto 
Mas se chamava Jorge e com sua sorte e nosso azar 
Matou todos do quilombo que hoje seria o nosso lar 
E mesmo assim de novo mostro a vocês outra vez 
A importância de ser negro por inteiro reconhecendo o seu valor 
E, por favor, respeitando o seu irmão mais claro 
Que está sempre do seu lado torcendo pra você vencer 
E crer na energia africana
Que emana das sementes espalhadas pelo mundo inteiro 

Seja escuro, mas seja escuro verdadeiro 
Afro-brasileiro 
Sabe quem eu sou? 
Afro-brasileiro
Me diga quem você é 
Afro-brasileiro 
Sabe quem eu sou? 
Afro-brasileiro

Somos descendentes de Zumbi, o grande guerreiro 
Todo dia quando vou sair de casa pra rua 
Faço um sinal da cruz pra fazer juz 
A fé em Deus e nos orixás
Sou duro na queda 
Porque sou filho de Ogum com Iemanjá
E pra injuriar os conservadores imbecis 
Tenho orgulho e bato no peito sou descendente de Zumbi 
Grande líder negro brasileiro 
Por nossa liberdade enfrentou exércitos inteiros 
Mas acabou perdendo a cabeça 

E não é a cara dele 
Que eu vejo nas camisetas, nos bottons, toucas ou bombetas 
Nem Ganga Zumba eu vejo nas jaquetas 
Até o rap o traiu importando santos em nosso terreiro
Que falta de respeito por um homem de coragem 
Que lutou por negros do Brasil inteiro 

Meu companheiro ou minha companheira 
Não digam besteira, se assumam
Ensine nossa cultura a sua família 
A nossa tradição, a nossa evolução 
Tudo isso está em suas mãos 
Não é brincadeira não, estou falando sério 
95, trezentos anos de Zumbi, vamos homenageá-lo agindo assim 

Afro-brasileiro
Sabe quem eu sou? 
Afro-brasileiro
Me diga quem você é? 
Afro-brasileiro
Sabe quem eu sou? 
Afro-brasileiro 

Somos descendentes de Zumbi, o grande guerreiro 
Venha que hoje é sexta 
Eu vou chamar os refrigerantes e pra quem gosta, cerveja 
Vamos sentar aqui no chão 
Colocar o box do lado 
Ouvir o som do GOG mano enfezado 
Câmbio Negro e Racionais, meu irmão 

Afinal, o que é bom tem que ser provado 
Tanta coisa boa e você aí parado, acuado 
É por isso que insisto, sou um preto atrevido 
Gosto de quando me chamam de macumbeiro
Toco atabaque em rodas de capoeira e toco direito 
Minha cultura primeiro 
O meu orgulho é ser um negro verdadeiro 

Afro-brasileiro
Sabe quem eu sou? 
Afro-brasileiro 
Me diga quem você é 
Afro-brasileiro
Sabe quem eu sou?
Afro-brasileiro
Somos descendentes de Zumbi, o grande guerreiro. 

 O grupo paulista de rap Racionais MC’s, um dos mais aguerridos no uso da música como meio de denúncia social, por sua vez, abriu seu mais vendido CD, “Sobrevivendo no Inferno”, com a canção “Jorge da Capadócia” (de Jorge Benjor, baseada em oração de fechamento de corpo, de domínio popular), na qual esse santo guerreiro é saudado com a expressão “Ogunhê!”, uma invocação de Ogum, orixá guerreiro associado a São Jorge. Símbolos cristãos, como o crucifixo e alguns versículos bíblicos, ilustram a capa, encarte e o própio CD.
 



 
 
 
 
 
 
 

 
 

Ogunheê!
Jorge sentou praça 
na cavalaria
E eu estou feliz porque eu também sou 
da sua companhia
Eu estou vestido com as roupas 
e as armas de Jorge
Para que meus inimigos tenham pés 
e não me alcancem
Para que meus inimigos tenham mãos 
e não me toquem
Para que meus inimigos tenham olhos 
e não me vejam
E nem mesmo um pensamento eles possam ter 
para me fazerem mal
Armas de fogo, 
meu corpo não alcançarão
Espadas, facas e lanças se quebrem, 
sem o meu corpo tocar
Cordas, correntes se arrebentem, 
sem o meu corpo amarrar
Pois eu estou vestido com as roupas 
e as armas de Jorge
Jorge é de Capadócia, 
Salve Jorge!


 

 Também o grupo carioca O Rappa, ao cantar a vida das periferias cariocas mostra a religião afro permeando seu cotidiano. No  CD “Lado B Lado A” (1999), além do encarte exibir referências às religiões afrobrasileiras e católica (desenhos em estilo  grafite de orixá, de São Jorge e a imagem de Nossa Senhora Aparecida, entre outros) duas letras mencionam diretamente o universo destas religiões. A letra da música que dá título ao CD, Lado B Lado A, revela a relação de conflito entre pessoas e grupos mediada pela mitologia negra (dos orixás) e pela força atribuida aos despachos:
 

 

 
 
 
 
 

Se eles são Exú
Eu sou Iemanjá
Se eles matam bicho 
Eu tomo banho de mar 
Com o corpo fechado
Ninguém vai me pegar 
Lado A Lado B
Lado B Lado A No bê-á-bá da chapa quente 
Eu sou mais o Jorge Ben 
Tocando bem alto no meu walkman
Esperando o carnaval do ano que vem
Não sei se o ano vai ser do mal Ou se vai ser do bem 
O que te guarda, a lei dos homens 
O que me guarda, a lei de Deus Não abro mão da mitologia negra Pra dizer: "Eu não pareço com você" 
Há um despacho na esquina do futuro
Com oferendas carimbadas todo dia 
Eu vou chegar, pedir agradecer 
Pois a vitória de um homem 
Às vezes se esconde num gesto forte 
Que só ele pode ver 
Eu sou guerreiro, sou trabalhador 
E todo dia vou encarar 
Com fé em Deus e na minha batalha 
Espero estar bem longe 
Quando o rodo passar 
Espero estar bem longe 
Quando tudo isso passar 

 

A letra de “Cristo e Oxalá” expressa a importância da fé associada à “cultura”. Nesta música, ouve-se, ainda, em segundo plano, a abertura de uma sessão de umbanda, algumas saudações aos orixás e o encerramento dos trabalhos:
 
 

Oxalá se mostrou assim tão grande
Como um espelho colorido
Pra mostrar pro próprio Cristo como ele era mulato
Já que Deus é uma espécie de mulato
Salve, em nome de qualquer Deus, salve
Se eu me salvei, se eu me salvei
Foi pela fé, minha fé é minha cultura, minha fé
Minha fé é meu jogo de cintura, minha fé, minha fé 
O Cristo partiu do alto do morro que nós somos
Rodeados de helicópteros que caçavam marginais
A mostrar mais uma vez o seu lado herói, herói
Se transformando em Oxalá, vice-versa, tanto faz
A rodar todo branco na mais linda procissão
Abençoando a fuga numa nova direção
Minha fé é meu jogo de cintura, minha fé

 
 

Sabotage, rapper paulista assassinado em 2003 no auge da carreira, em seu CD solo  "Rap é compromisso" (2001) gravou a faixa "Cantando Pro Santo" (Sabotage e Chorão) na qual inúmeras referências aos orixás (chamados de "santos") e ao catolicismo são feitas, associadas à esperança de mudança da condição social da população da periferia. 
 
 

Ahn, eu acho que o jovem de hoje em dia deve nele se informar,
Ver bem as coisas como são,
Poder contestar as coisas de forma clara,
Não só rimas em vão

Algo no ar, contrariado nêgo chega
Pra reclamar fortes momentos de tristeza
De um gás que sobe (gás que sobe)
Parceiro truta forte, ih, ihh

Então inspira sorte, guerreiro que resolve
Socorre, não dispensa o cano e corre
Não é loque, é tipo um Pixinguinha nos acordes
Mesmo sofrendo alcança as águas de riacho doce
Onde quer estar esteja vai estar protegido
Aquele que nos dito bem também fora menino
Me sinto motivado de prioridades
Na cidade pressionado por necessidades
Só maldade pra invadir coban e lares
Um qualquer quem sabe
Pra comprar um Cadillac mais tarde
Do tipo sem caô, só boa imagem
Um descendente dos Palmares, é, você sabe
Os manos do outro lado da muralha aquele salve
Pra quem sabe, na próxima visita liberdade
A paz alcançará nosso amor do pai
Segue firmão serei capaz, de sempre sempre mais
O criador fará de ti um bom rapaz
Se passa o tempo e eu vou vendo, vários no veneno
É sempre assim na zona sul ladrão bom vai embora cedo
Para a permanência do sistema carcerário
É a decadência, fraude na lei do mais fraco
Existente, na mente de quem anda errado
Falta emprego pra aqueles que pegô pesado
OnilêOnirê é um dos títulos de Ogum que alude a sua condição de rei da cidade de Irê, o pai Ogum
AiêêouOra ieieu é a saudação a Oxum, o mãe Oxum
Filho de Zambi, cansado de ver sangue aqui na Sul
Odara Odara ao povo preto, seja obsoleto
Talvez mais ligeiro, faça tudo em segredo
A liberdade vem primeiro, meu clone meu espelho
Sem sossêgo, sem emprego, no perreio, daquele jeito
Peço ao boiadeiro que ouça o meu apelo
O povo está crescendo, fique atento
Odin, ordene o vento
No mar um barco pra remar tem que ter remo
Independente não de mim, mas também sim,
Vários pretos
A criançada faz do rap seu espelho
São Cosme Damião, dê-lhes proteção
Na saída do Campão, na final do Conringão
Na passeata do Centrão, paz para o povão
O ZazeZaze é o nome como é conhecido no rito angola a divindade do raio e do trovão, sheiks na Bahia,
Baiano, seja escudo deste mano que se encontra em pranto
Que por engano, tretou com fulano
Hoje é seu dia, perante a lei do homem o cano
Ó senhor que gire o mundo, eu peço agôagô significa licença, permissão, clemência, perdão, proteção pro subúrbio
Existe força suprema, problema pra ciência
Lá no Canão somente Deus me dá certeza
Das incertezas inclarezas que seus filhos faz
Os perdoe, pai, eles não são capaz de viver em paz
De forma irracionais ambiciosos
Se lembram de Jesus pra ir ao pódio
E em seus olhos vejo um ódio diabólico
A figura do senhor tá sempre em pele de leprósos
Aquele que nasceu porém em Jerusalém
Fora traído, porque do inimigo quis o bem
Sem pesadelo, na paz ou por inteiro
Demorô, aqui estou de mente afoita, ligeiro
Me dê ao menos tempo pra orar
Pedir pra Oxalá me preparar pra fama
Bate cabeça no gongá, só na mãnha
Vou tomar banho de abôbanho feito de ervas,
Nas ervas de Aruanda
Quem não conhece enfim
Eu sei de fama
Mas nada contra
Várias demanda rematada na umbanda
Provável referência a Zé Pilintra, enfim carrego a fé desde criança
Deus menino, meu pastor, console a nossa dor
Guerras, intrigas de familia é um horror
Nossa Senhora, olhe por todos,
Jesus faz pelo povo
A terra, a água, o mar e o ar e a natureza,
Eu posto
Santa Clara clareou, agora aqui estou
De mente erguida, vou que vou, como Cristo Redentor
Dê graças ao senhor,
Sem dinheiro e com amor
Lutou e conquistou, culpados perdoou
Quem crucificou tentou provar que não errou,
Se apavorou ao ver que Deus menino então ressuscitou
Quero axé, do Brooklyn ao Canão
vejo os irmãos e vou na fé,
Assim que é 
Eu quero axé, do Brooklyn ao Canão
Vejo os irmãos e vou na fé,
Assim que é

Algo no ar, contrariado nêgo chega
Pra reclamar fortes momentos de tristeza
De um gás que sobe
Parceiro truta forte, ih ihh 

Um mano firmeza fala sempre com clareza
Está contra a realeza que ostenta essa pobreza
Mas vale a liberdade e o bem que ela te faz
Liberdade é tudo aquilo, liberdade é muito mais
Peão no Impala, num domingo de sol
Andando de skate ou jogando futebol
A raça unida jamais será vencida
A raça unida é o que pega, é o que liga
Se liga, me diga, se a vida aqui não merece uma chance
Fora do pesadelo, esperto no lance
A vida vivida de um modo simples é bem melhor pra mim

Há uma aparente possibilidade de mudar as coisas
Definitivamente não vão me deixar pra trás
Não mais, não mais, não mais
O estado pleno da sabedoria é o dom mais elevado
Renovando e transformando mudando todo o quadro
Eu tô ligado,
Chorão e Charlie Brown
Sabotage lado a lado 
Familia RZO então eu sei
Renovação me trás a brisa, cada medida
Unidos um dia então seremos nós a justiça
Nós a justiça
Essa eu fiz por vocês, irmãos
Essa eu fiz por você, ladrão
 
 
 
 
 

O grupo de rap Sinhô Preto Velho assumiu tão plenamente esta influência que denominou seu estilo de “hip-hop de terreiro”. Em seu repertório misturam-se rap, pontos de umbanda e sambas-de-roda executados por meio de atabaque, pandeiro, berimbau elétrico, pick-up, entre outros instrumentos. O nome do grupo, uma homenagem ao sambista Sinhô e ao Preto-Velho, entidade da umbanda, expressa a fusão pretendida entre os ritmos afro associados à música eletrônica. Os títulos de algumas faixas indicam por si só esta tendência, como “Terreiro tecnológico”, de Renato Dias; “Maculelê groover”, de Douglas Fávero, (do CD “Backbone de Quilombo”, de 1998) e “Filho de umbanda soul”, de Pico Bantu (do CD “Kambono”, de 2001). Em “Nagô”, de Pico Bantu, essa identidade se afirma nos seguintes termos: 
 
 

Capa do CD Kambono, de Sinhô Preto Velho

Me chamam de negão, mameluco, black
Nada disso, eu sou nagô, toco atabaque e faço scratchesTermo que no movimento hip-hop designa o som obtido pela fricção da agulha do toca-disco em contato com a superfície do disco de vinil que tem sua rotação controlada manualmente pelo DJ (discotecário).

Eu sou nagô, sou filho de Oxalá
E na língua afiada eu carrego o ioruba
Brancos em seus navios negreiros me tiraram da tribo
E me trouxeram para o pesadelo
Uma terra distante e desconhecida
Mal sabia eu que era o fim de minha vida
Humilhados e acorrentados até o pescoço
Comiam a carne e jogavam o osso,
A viagem era longa e meus irmãos morriam
Só assim as suas almas se libertariam
Até que um dia o dia chegou
O navio então parou
Nas costas uma caixa que tinha que carregar e gritavam:
"Negro você tem que trabalhar"
Não entendia o que acontecia com toda essa gente
Me levavam em praça pública 
E olhavam os meus dentes
De repente, o ouro rolava
Com algumas moedas
Logo alguém me levava
Fui parar num latifúndio
Uma grande fazenda acorrentado
Pro orixá não podia nem fazer oferenda
A senzala era o sofrimento do negro
Que sem perspectiva morria ao relento
Depois era enterrado em qualquer buraco
Eu sou negro e mereço
Ser enterrado dignamente, pois sou filho de Deus
Pense bem, branco, negro pode ser os filhos teus
Um dia a esperança chegou
Negro bantu ele se rebelou
Matou muito branco e um quilombo ele montou
Era Palmares a última esperança
Pois foi com ela que eu sonhei desde criança
Depois emotivado pela dor me revoltei
Peguei nega Teresa
Da senzala eu escapei
Nagô negro guerreiro
Nagô negro caçador
Na África era um rei
No Brasil um trabalhador
Viva Zumbi
 
 
 
 

Em “Terreiro tecnológico”, a Internet é vista também como um espaço legítimo para a presença do sagrado afro-brasileiro:
 
 
Na mandinga, na macumba, na macumba, na mandinga 
No terreiro tecnológico, no meu site com meu guia
Encruzilhada, o despacho, farofa, Exu e galinha
Deletar pemba de angola no prático for windows
E no software Zé Pilintra
Navegar na internet 
Sinhô Preto Velho entre os sambistas.

 
 

Na música experimental, cantores como Itamar Assumpção e o grupo Karnak, entre outros, também reconheceram a importância destes temas, incorporando-os às letras de suas músicas. Itamar Assumpção, nascido numa família praticante da umbanda, em Tietê,  no interior de São Paulo, conhecida pela difusão do samba rural paulista, compôs entre outras, “Zé Pelintra” (em parceria com Wally Salomão, 1988), que fala desta entidade da linha de Exu associada à abertura dos caminhos e à malandragem.
 
 

Estátua de Zé Pilintra. Vale dos Orixás, São Paulo. Foto: Vagner Gonçalves da Silva
Zé Pelintra desceu
Zé Pelintra baixou
É ele que chega e parte a fechadura
Do portão cerrado
Zé Pelintra desceu
Zé Pelintra baixou
É ele quem chamega, quem penetra
Em cada fresta e rompe o cadeado
E quando Zé Pelintra pinta na aldeia
O povo todo saracoteia
Aparta briga feia, terno branco alinhado
Cabelo arapuá de brilhantina besuntado

Ele, do ovo, é a porção gema, bebe sumo de jurema
Resolve impossível demanda
Homem elástico, homem borracha
Desliza que nem vaselina
Saravá a sua banda

É ele quem abre uma brecha
Acende uma tocha no breu 
Desparafusa a rosca
Seu cavaloNa umbanda, os médiuns são chamados de cavalo sou eu


 
 
 

Em "Lambuzada de dendê" (1993), esse alimento importante na preparação dos pratos dos orixás, associado sobretudo aos "orixás quentes" como Iansã e Exu, serviu como síntese para o compositor expressar seu desejo e "devoção" pela mulher que tendo seu corpo "lambuzado de dendê" aqueceria e tornaria ainda mais sensual a relação entre ambos. As menções às danças afro-brasileiras e ao pintor Carybé que se especializou em retratar a cultura religiosa afro-brasileira, sobretudo na Bahia, com suas telas de cores vivas e desenhos de mulheres de silhuetas sensuais, reforça a mensagem contida na letra.

 
 

Quero tê-la, quero você, quero ver
Quero vê-la lambuzada de dendê
Quero tê-la, quero, quero, quero ver
Quero vê-la lambuzada de dendê

Quero vê-la lambuzada de dendê
Da cabeça para baixo mexer, remexer
Dançar samba, lambada, ilê iê iê
Umbigada, merengue, reggae e balé

Quero tê-la, quero ter o seu axé
Quero tê-la comigo no badauê
Minha estrela, minha guia, minha fé
Quero tê-la, quero você, quero ver
Quero vê-la lambuzada de dendê

Dançar batucada e maculelê
Desde a noite toda até o sol nascer
Dançar sobre as águas minha Oxumaré

Quero tê-la para sempre na Guiné
Em Panamaribo, Jamaica ou Quebec
Quero vê-la num vídeo, numa TV
Quero vê-la na tela do Carybé
 
 
 

Ainda no campo da música experimental, o grupo Karnak, na música “Oxalá, meu pai” e outras, funde cantigas de umbanda e do folclore popular com ritmos diversos de várias culturas criando um policromatismo musical singular.
 
 
 
 
 
 

Desde que o samba é samba é assim
 
 
 

Na produção musical dos anos de 1970 em diante é o samba, evidentemente, que permanece como principal gênero musical na propagação da temática religiosa afrobrasileira. Sobretudo o da tradição do Partido Alto, ritmo  popular entre compositores e cantores familiarizados com o universo da umbanda e do candomblé. Baseado no improviso, este estilo musical, em que se alternam dois ou mais cantores, muitas vezes em forma de desafio, teria se originado dos encontros e festas religiosas, como o jongo e o sotaque no rito angola (Amaral, 2002 [1992]). Aniceto do Império, Clementina de Jesus, Xangô da Mangueira, Candeia, Bezerra da Silva, grupo Fundo de Quintal e Zeca Pagodinho, entre muitos outros, são exemplos da constante renovação da relação entre as classes populares e as religiões afrobrasileiras, que agora incluem outros grupos sociais, como as classes média e alta (Prandi, 1991, Silva, 1995 [1992]).
 
 

Clementina de Jesus - Foto de Mário Luiz Thompson





Clementina de Jesus, embora tenha começado sua carreira artística profissional só depois dos 60 anos de idade, foi considerada a rainha do partido alto. Negra, de origem humilde, trabalhara como empregada doméstica e cantava em festas e romarias católicas antes de participar de suas primeiras gravações, como em "Gente da Antiga" (1968). Em seus álbuns, gravou muitas canções de domínio público, geralmente jongos, cantos de trabalhos, ladainhas e pontos de umbanda. No LP "Clementina, Cadê Você?" (1970) gravou "Três Corimas: Ogum Megê; Bendito louvado, ó Ganga; Lá no mato tem ganga", adaptação de pontos cantados em terreiros.
 
 

 
 
 
 
Ogum Iara
Ogum Megê
Ogum Rompe Mato, auêSaudação aos avatares de Ogum
Bendito louvado seja, ó GangaO termo ganga possui inúmeros significados religiosos. É provável que no contexto desta canção se refira a uma entidade espiritual (Exu, Preto-Velho etc.)

O rosário de Maria
No mundo já era noite, Ganga
Lá no céu parece dia

 
Lá no mato tem folha
Lá no mato tem Ganga
Folha por folha

 

No LP "Marinheiro só" (1973), Clementina exibe sua proximidade com as religiões afro, começando pela cantiga que intitula o trabalho (muito cantada para a entidade Marinheiro, na umbanda). Na seleção "Cinco cantos religiosos" gravou, também, "Oração de Mãe Menininha" (Dorival Caymmi) ; "Fui pedir às almas santas"; "Atraca, atraca"; "Incelença" (estas de domínio popular) e "Abaluaiê" (Waldemar Henrique). Nas letras dessas músicas, apresentadas abaixo, os orixás relacionados ao poder de vida e morte, Nanã e Obaluaiê, são louvados ao lado de cantos fúnebres católicos e da oração às almas (eguns ou espíritos de mortos, como os Pretos-Velhos). Essa espécie de homenagem à ancestralidade também se expressa no canto à famosa mãe Menininha do Gantois a quem Clementina ainda cantaria na música "Embala eu", gravada com Clara Nunes no LP "Clementina e Convidados" (1979). 
 
 

Eu andava perambulando
Sem ter nada para comer
Fui pedir às almas santas
Para vir me socorrer
Foi as almas que me ajudou
Meu Divino Espírito Santo
Louvo a Deus, Nosso Senhor
Quem pede às almas
As almas dá
Digno de pena
É quem não sabe aproveitar
 

Atraca, atraca
Que vem Nanã ê ê
Atraca, atraca
Que vem Nanã ê a
É Nanã, rainha do mar
É Nanã, mamãe Iemanjá
É Nanã que vou saravá ê a
 

Uma incelênciaCanto fúnebre realizado diante do corpo do falecido em que a palavra incelência deve ser repetida 12 vezes que é pra ele
Mãe de Deus, mãe de Deus, ó mãe de Deus
Rogai a Deus por ele 
 

Perdão, Abaluaiê, perdão
Perdão a Orixalá, perdão
Perdão a meu Deus do céu, perdão
Abaluaiê, perdão
Ó rei do mundo
Perdão, Abaluaiê
Ele veio do mar, Abaluaiê
Ele é forte, ele veio, Abaluaiê
Salvar...
Atôtô lu Abaluaiê
Cambône issala na muxila golô-o-ê
Cambône issala na muxila golô-ô
A bença meu pai!


 
 
 

Aniceto do Império (1912-1993), um dos fundadores da escola de samba carioca Império Serrano, é, talvez, um dos melhores exemplos desta proximidade entre terreiro e samba de partido alto. Tendo frequentado desde pequeno o Morro da Serrinha, em Madureira, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, conhecido pelas tradições do jongo, samba e partido alto, incorporou em suas letras e apresentações temas religiosos de origem africana. Na música "Desaforo",  do disco "Partido Alto Nota 10" (1984), Aniceto faz com Martinho da Vila um dueto em que as entidades religiosas são invocadas para mostrar as vantagens que cada um diz ter em relação ao seu desafiante (Se um é experiente como o preto-velho, o outro é astuto como o erê, espírito infantil. Se um é filho de Obaluaiê, deus das epidemias, o outro é filho de Oxóssi, deus da caça). Dizer-se iniciado (portanto ter usado o quelê, colar símbolo da iniciação) e conhecedor de certos trabalhos (que envolvem, por exemplo, o uso do dendê) para "amarrar", "esfriar" ou "dominar" a força do outro, também é um recurso para mostrar vantagens. E duvidar dessa condição de iniciado ("nunca vi o teu ilê", terreiro) é uma forma de desqualificar o oponente.
 
 

Martinho da Vila:
Você me chamou de candengoIndivíduo ruim, ordinário
Desaforo de você
Me chamou assim por que?
Diga, anda, que eu quero ver
Deixa o dia amanhecer
Aniceto do Império:
Você me chamou de candengo
Tu não é ABCD
Cartilha que a gente lê
Me escuta para aprender
[...]
Martinho da Vila:
Você me chamou de candengo
Mas teu telhado é de sapê
Eu só jogo fogo pra arder
Que a água não apaga porque
O fogo que eu já botei dendê
Aniceto do Império:
Você me chamou de candengo
Olha vou amarrar você
Grama seca vais comer
Eu sou feito; meu quelê
É de angola podes crer
Martinho da Vila:
Você me chamou de candengo
Nunca vi o teu ilê
Fez feio e não podes correr
Você não canta porque
Não pode se defender
Aniceto do Império:
Tua voz está num pote
Quase cheio de dendê
[...]
Do contrário vais morrer
É puruquê
Cuida da palavra tua tem dendê
Pode te machucar porque...
Martinho da Vila:
Eu posso ser candengue pra você
Sou filho de Obaluaiê
Aniceto do Império:
 
Você é preto-velho
Mas eu sou erê
Eu sou protegido por erê
Na cabeça da angola podes crer
Martinho da Vila:
Boto logo para arder
Jererê
Aniceto do Império:
Partideiro é isso 
Podem crer
Falou Aniceto
Vai falar você
Martinho da Vila:
Eu não tenho nada pra dizer
Já estou cheio de aprender
Canta direto que eu quero ver
Você não canta por que?
Vai, Aniceto
Aniceto do Império:
Sapateia, Dona Idê
Diga no gogô, quero ver
Eu sou filho de Oxóssi, Okê!Saudação de Oxóssi
Martinho da Vila:
O meu peito já está até a doer
Aniceto do Império:
Quem me ajuda é seu babaquerêPai pequeno. Auxiliar direto do pai ou mãe-de-santo.
Martinho da Vila:
Atotô!Saudação de ObaluaiêObaluaiê
Aniceto do Império:
Okê!

 
 

O compositor Candeia, Antonio Candeia Filho, foi outro importante difusor do candomblé, cujos terreiros frequentava, no Rio de Janeiro, e de várias manifestações afrobrasileiras, como a capoeira (da qual era praticante), o maculelê e o jongo. Em “Samba de roda” gravou esses ritmos ao lado de uma seleção de partidos altos. Seu último disco, de 1978, ano de sua morte, foi, significativamente, intitulado “Axé”, referência aos valores religiosos que divulgou ao longo de sua carreira.
 
 









Bezerra da Silva, conhecido como “cantor de sambandidos”, adotou para si a identidade do malandro associada ao samba como estilo artístico. Suas músicas narram a vida no morro, a oposição entre malandro e otário, o jogo do bicho, os “expedientes” (golpes) da malandragem, o envolvimento com a polícia, confusão amorosa etc. permeados pela regulação da macumba. Praticante da umbanda, a cuja proteção atribuiu o fim de uma fase de miséria (Vianna, 1999), Bezerra da Silva canta a religião tanto do ponto de vista dos valores de resistência e solidariedade que ela promove para os grupos marginalizados, como da malandragem que também a atinge e inverte seus valores morais. Em “Zé Fofinho de Ogum”, um  pai-de-santo é visto como um “tremendo 171” (referência ao artigo 171 do Código Penal Brasileiro que prevê o crime de estelionato) que aplica golpes em sua clientela:

 
 

Zé Fofinho de Ogum
Era um tremendo 171
Dizia que os búzios falavam
Tudo o que ele queria saber
Desde a hora de nascer
Até o dia que ia morrer
Amarrava mulher, amansava marido
O Zé só faltava era fazer chover

E da esposa do delegado
Pasmem, ele tomou de montão
Pra dizer que o doutor estava lhe traindo
E ela pensando que ele era bom
Uma linda imagem de São Jorge
Em suas costas muito bem tatuado
O Zé com um papo de caô-caôConversa fiada; mentira
Dizia que tinha o corpo fechado

E quando sujou geral
Ele pelo santo não foi avisado
De repente pintou a "caçapaPrisão [gíria]"
Era o Zé zero a zero com o delegado
O doutor muito invocado gritou: 
"O couro vai comer 
Tira a roupa do malandro 
E bate até o cavalo correr
Livra somente a cara de São Jorge
E bate até o cavalo correr"


 
 

Em “Terreiro de safado”, o pai-de-santo se aproveita da gira do “povo da rua” (geralmente dedicada às divindades associadas à sexualidade, como os exus e pombagiras) para se aproveitar das mulheres (“rabo-de-saia”):
 

 

Que terreiro é esse
Que pai-de-santo é safado
Pega santo com a mão no bolso
Com olho aberto e outro fechado

Quando é pra fazer despacho
Veja a lista do safado
Pede frango com farofa
Cerveja gelada e uísque importado
[...]
Vem gente de todo lugar
Pra se consultar na favela
E na gira do povo da rua
Ele diz sorridente: É hora da gandaia
Vão embora os perna-de-calça
Que agora só fica os rabo-de-saia 
É que eu não quero macho no terreiro
Porque macho atrapaia
 
 
 
 

A crítica ao uso da religião com fins de aliciamento sexual ou exploração material é feita sempre em tom irônico, mesclando nas letras expressões próprias da linguagem do povo de santo (Amaral, 2002 [1992]) com as do universo da rua e da malandragem. Em “Pai Véio 171” o título já indica o encontro dessas linguagens (Pai Véio remete ao Preto Velho e o artigo 171 ao já referido crime de estelionato). 
 
 
 

A inserção da religião em espaços permeados pelo tráfico e consumo de narcóticos também revela as inevitáveis relações de convivência destes dois espaços sociais no contexto das favelas e morros, como em “Vovô Tira-Tira”, na qual os “santos” reproduzem os vícios dos seus “cavalos” (médiuns):
 
 

 
Aperta um
Que Vovô Tira-Tira pintou no congá
E sem dar dois
Vovô não pode trabalhar

É que Tira-Tira é caô caô
E tira onda adoidado
Tira roupa do vestido
Tira alma do pelado
Tira você de perto de Deus
E deixa junto com o diabo

Tira dos todos os pertences
De quem nele leva fé
Tira o sossego do casal
E faz a cabeça da mulher
Pra botar chifre no marido
E depois deixa ela a pé

Tira você de uma boa
Tira sua inspiração
Tira tudo do seu bolso
Tira até sua razão
Ela só não tira da "caçapa"
Porque detesta camburrão

Pra defumar rapaziada,
Ela tá certo, Ele tá certo
Vovô tá certíssimo

Tira-Tira é caô caô
 
 
 

O atendimento indiscriminado que religião oferece a todos que a procuram, parece fazer dela um caleidoscópio da vida no morro no qual pode-se ver os mais diferentes tipos sociais: desde o viciado/traficante que teve sua cocaína ("pó”) misturada com maizena (como na letra de “São Murungar”) até o candidato político mentiroso (como na letra de “Candidato caô-caô”):
 
 
 
 
Me diz, Vovó
Me diz, Vovó
E tenha dó
Quem foi que botou maizena no meu pó

Eu vou lhe dar muita roupa
Cachimbo novo maneiro
Vou enfeitar seu congá
E ampliar seu terreiro
Fumo, vela e vinho 
vou gastar mango adoidado
Mas joga os búzios, minha Velha
É me diz quem é esse safado

Tem uma pá de otário
Eles não prestam atenção
Cheiram maizena adoidado
Depois diz que tá doidão
Eu prefiro andar sozinho
Pra não entrar numa fria
Sei que meu nariz é grande
Mas não é forno de padaria

Tem um moleque safado
A fim de me esculachar
Misturou minha rapa
Hoje eu não vou cafungar
Quem é ele, Vovó?
Juro por São Murungar 
Esse canalha não perde por esperar 

Sim, mas me deixa de cara com o gol
Diz quem é esse mau cheirador
Eu vou mostrar para ele
O bicho solto que sou
Eu de joelho imploro
E peço a minha Vovó
Na fé de exame diz 
Quem botou maizena no meu pó
 
 
 
 

Na música “Candidato Caô, Caô”, vê-se que a religião participa de tal maneira da vida das pessoas que até o político candidato dela se aproxima em busca de votos; mas a entidade, que enxerga mais longe, avisa sobre suas falsas promessas:
 
 
 
Ele subiu o morro sem gravata 
Dizendo que gostava da raça 
Foi lá na tendinha bebeu cachaça
Até bagulho fumou 
Entrou no meu barracão
E lá usou lata de goiabada como prato 
Eu logo percebi é mais um candidato 
Para a próxima eleição

Ele fez questão de beber água da chuva 
Foi lá no terreiro pedir ajuda 
Bateu cabeça no congá
Mas ele não se deu bem 
Porque o guia que estava incorporado 
Disse: "Esse político é safado 
Cuidado na hora de votar" 
Também disse:
“Meu irmão, 
Se liga no que eu vou te dizer 
Hoje ele pede seu voto
Amanhã manda a polícia lhe bater"

Meu irmão,
Se liga no que eu vou te dizer 
Depois que ele for eleito
Dá aquela banana pra você
Podes crer.


 
 
 

Outro núcleo difusor da relação entre samba e religiões afrobrasileiras foi formado pelas as rodas-de-samba realizadas em torno de  blocos carnavalescos como  o Cacique de Ramos do Rio de Janeiro,  ponto de encontro importante de sambistas que tematizaram essas religiões. Esse bloco, situado em Ramos, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, foi fundado nos anos de 1960 por um grupo de jovens com nomes indígenas (recebidos de seus pais por motivos religiosos), entre os quais destacaram-se os irmãos Ubiracy e Ubirany.

Muro da sede do Cacique de Ramos. Foto de Paulo Eduardo Neves, 2002Filhos de uma mãe-de-santo umbandista, o emblema adotado pelo grupo foi a cabeça de um índio, reprodução da imagem de caboclo típica dos terreiros de umbanda. Além de participar caracterizado de índio no carnaval, o grupo se reunia semanalmente em rodas de samba na sede bloco, ao pé de uma tamarineira. O local, que ainda hoje exibe os axés plantados (magias para dar sorte e proteção), passou a fazer grande sucesso atraindo a atenção de sambistas famosos, como Beth Carvalho que convidou alguns músicos que  freqüentavam o Cacique de Ramos para participarem de seus discos, como os integrantes do Grupo Fundo de Quintal, formado, entre outros, por Ubiracy e Ubirany.Nas músicas deste grupo a religião tem  por inspiração a ideologia umbandista, que enfatiza o encontro de raças e das várias identidades religiosas presentes na cultura brasileira. É o caso, por exemplo, da letra de “Brasil Nagô” (Cleber Augusto e Djalma Falcão): 
 
 

Se mandarem me chamar eu vou
Sou brasileiro, sou nação nagô
Sou do sul, sou do nordeste
Chimarrão, cabra da peste 

Sou valente, eu sou paz e amor
Levo a vida do jeito que for
Alegria, sorriso e dor
Eu sou branco, eu sou negro 
Viro o mundo pelo avesso
Tenho os pés no chão
Sou sonhador
Vou à procissão do Santo Padre
Saio da igreja, entro nos bares
Sob a proteção dos Sete Mares
Peço axé ao meu babalaô
Piano, pandeiro ou viola 
Baião, rock, samba
Nem dou bola, tanto faz
Cachaça ou coca-cola
Se mandarem me chamar eu tô.


 

A imagem do Brasil como uma grande procissão de reconciliação, à la Macunaíma, também está presente em “Por todos os santos” (Nelson Rufino e Carlinhos Santana) e “Recado de Fé” (Paulo Henrique e André Renato).
 

Leva meu pranto
A solidão tanto me maltrata
Dói desencanto
Saudade, desilusão mata
Pelo santo maior da Bahia
Rei Momo que é rei da folia
Que sabe até Mestre Marçal 
Candeia, Dandara, Janaina 
Omolu, toda força divina 
Vem logo pra curar meu mal 
Por Oxossi que é rei de Aruanda
Ogum, defensor de demanda
Escrava Anastácia, Oxum
Zumbi, grande deus dos Palmares
Rainha Mãe dos sete mares
Volta sem fazer zum, zum, zum
Leva meu pranto... 
Por Senhora da Penha, do Rio de Janeiro
Que é festa em Janeiro
Pro guerreiro São Sebastião
Por Nanã, Iansã, Xangô, Irôco
Retorna me dá só um pouco
De paz pra esse meu coração
Por Tupã, Jeová, Zambi, Olorum
Mangueira, Portela, Olodum
Pade Ciço de lá do sertão
Joãozinho da Goméia, Menininha
Seu Sete, dou sete velinhas
Eu quero é reconciliação

 
 

Zeca Pagodinho foi outro importante sambista saído das rodas do Cacique de Ramos. Seu estilo musical também está muito associado à malandragem e a vida nos morros cariocas. Em seus  discos tem gravado canções com temáticas religiosas afrobrasileiras. São Jorge e Cosme e Damião, ou Ogum e Ibeji (erê, espírito infantil), são frequentemente citados em suas canções. A capa do CD abaixo (2005) e a primeira faixa, "Pra São Jorge" (Pecê Ribeiro) expressam essa devoção. 

 
 
 
 
 
Vamos saudar São Jorge cavaleiro
Vou acender velas para São Jorge
A ele eu quero agradecer
E vou plantar comigo-ninguém-pode
Para que o mal não possa então vencer

Olho grande em mim não pega
Não pega não
Não pega em quem tem fé
No coração

Ogum com sua espada
Sua capa encarnada
Me dá sempre proteção
Quem vai pela boa estrada
No fim dessa caminhada
Encontra em deus perdão 


 
 

No disco "Patota de Cosme"( 1987), a música-título (Nilson Santos e Carlos Sena) menciona a devoção à Cosme e Damião num contexto de proteção contra a "macumba" de amarração que fez a mulher. Em "Falange do Erê" (Arlindo Cruz; Jorge Carioca e Aluísio Machado), do disco "Mania de Gente" (1990), novamente é por meio do culto a estas entidades (dando-lhes balas e doces) que se expressa a alegria de se viver.

 
Mulher, mulher, mulher
Você não terá o meu amor
Pode tentar o que quiser
Já levou o meu nome na macumba
Pra me amarrar
Já tentou diversas vezes me prejudicar
Mas minha cabeça é sã
Porque Cosme é meu amigo
E pediu a seu irmão, Damião
Pra reunir a garotada
E proteger meu amanhã, meu amanhã
Na verdade você nunca me pertenceu
E quando seguiu meus passos
Foi visando o que era meu
Você não passou de um caso
Que nasceu por um acaso
Seu amor não era eu
Quando teve a conclusão
Que o meu pobre coração
Não abrigaria você
Passou me caluniar
Mas a patota de Cosme
Não deixou me derrubar

 
 
 
Salve a falangê de erê!
Eremin!Saudação para erê
Só quem acredita vê
Que essa vida é um doce
Mesmo se não fosse
Eu seria assim
Um menino brincalhão
Encontrei a chance
Bem ao meu alcance
E agarrei pra mim
Eu dou um
Viva Cosme e Damião
Doum
O que importa é que a gente miúda
Me deu sempre ajuda quando precisei
O que prego nas minhas andanças
Que só as crianças me ditam a lei
E assim me sinto protegido
Ungido com a viscosidade da fé
Sua benção é presença imensa
Que vença na crença
Quem tem seu axé

Da vida tão amargurada
Essa gurizada me fez renascer
Hoje sou cobra criada
Agradeço a ibejadaGrupo de ibejis, meninada
Falange do erê
Vinte e sete de setembro
Eu sempre me lembro
Não esqueço de dar
Cocada, paçoca, suspiro, pipoca,
Bolo, bala, bola, cuscuz e manjar


 

Em "Yaô, cadê a samba?" (Campolino e Tio Hélio) vários termos e expressões do contexto ritual são cantados contribuíndo para sua inclusão no vocabulário da cultura nacional: yaô (pessoa iniciada nos terreiros de tradição nagô), "samba" (além do ritmo, mãe-pequena ou ajudante nos terreiros de tradição banto), "curimba" (atabaque), "firma a cabeça" (concentração para o transe), "cabeça de oratório" (pessoa que entra em transe de muitas entidades), "cambono" (ajudante), "falange da rua" (entidades tidas como menos evoluídas como exus, pombagiras etc.)

 
Yaô
Yaô, cadê a samba?
Está mangando na curimba

Samba, firma a cabeça
Pra evitar o falatório
Pra assistência não dizer
Que tens cabeça de oratório

Mãe pequena me conhece
Não sou de vacilação
Não pode beber cachaça
Nem deve cuspir no chão, Yaô

Cambono fica na minha 
Que eu vou ficar na sua
Vamos pedir segurança
Pra falange lá da rua, Yaô
Yaô, cadê a samba?
Está mangando na curimba


 
 

Em canções como “Bamba no feitiço”, (dele com Wilson Moreira) e “Eu vou botar teu nome na macumba” (dele com Dudu Nobre), abaixo respectivamente, o tema do feitiço associado à disputa amorosa, já visto em inúmeras letras desde os anos de 1930, ressurge em vários de seus sucessos.
 

 

Ela é bamba, ela é bamba
Ela é bamba do feitiço
Eu vou contar
Ela não precisa disso
É pra ajudar
Que faz seu rebuliço
No congá
Com a proteção de erê
Não deixa me derrubar 
Tem muamba seu feitiço
Tem a fé de Oxalá
Me tire um Erefuê
Com a força do patuá
Na dança do sarambé
Ela me faz ouriçar
Quando faz seu rebuliço
Me limpa todo o fubá
Ela vive pra ajudar
E eu desejo alafiá


 
Eu vou botar teu nome na macumba
Vou procurar uma feiticeira
Fazer uma quizumba 
pra te derrubar
Oi, iaiá
Você me jogou um feitiço,
Quase que eu morri 
Só eu sei o que eu sofri 
Deus me perdoe, 
Mas eu vou me vingar
Oke arôSaudação para Oxóssi
Eu vou botar seu retrato
Num prato com pimenta
Quero ver se você "güenta" 
A mandinga que eu vou te jogar 
Raspa de chifre de bode 
Pedaço de rabo de jumenta 
Tu vais botar fogo pela venta 
E comigo não vai mais brincar 
Asa de morcego 
Corcova de camelo pra te derrubar 
Uma cabeça de burro
Pra quebrar o encanto do seu patuá
Olha, tu podes ser forte 
Mas tens que ter sorte 
Pra se salvar 
Toma cuidado, comadre
Com a mandinga que eu vou te jogar.

 
 

O samba deste período em São Paulo também apresenta fortes vínculos com a religiosidade afrobrasileira. Geraldo Filme, um dos maiores sambistas paulistas, fez questão de enfatizar a origem rural do samba que se tornou conhecido na Capital. Cidades do interior, como Piracicaba, Tiête e Pirapora do Bom Jesus, foram centros difusores de um samba fortemente associado às comunidades religiosas, sobretudo de umbanda, da qual saiam também as rodas de jongo (Silva & Baptista & Azevedo & Bueno, 2004). Em inúmeras canções, Geraldo Filme cantou a dimensão religiosa desse samba, como em “Batuque de Pirapora”, em que o preconceito contra o negro acaba por reforçar os laços de solidariedade em torno das festas compartilhadas pela comunidade afrobrasileira (Amaral, 2002 [1992]).
 

 

Eu era menino, 
Mamãe disse:
“Vamos embora 
Você vai ser batizado
No samba de Pirapora” 
Mamãe fez uma promessa 
Pra me vestir de anjo 
Me vestiu de azul celeste, 
Na cabeça um arranjo 
Ouviu-se a voz do festeiro 
No meio da multidão: 
“Menino preto não sai 
Aqui nessa procissão” 
Mamãe, mulher decidida 
Ao santo pediu perdão 
Jogou minha asa fora, 
Me levou pro barracão
Lá no barraco tudo era alegria 
Negro batia na zabumba e o boi gemia
Iniciado o neguinho num batuquede terreiro 
Samba de Piracicaba,
Tietê e campineiro 
Os bambas da paulicéia
Não consigo esquecer 
FredericãoFrederico Penteado foi um dos fundadores da escola de samba paulistana Vai-Vai, localizada no Bexiga. na zabumba, 
Fazia a terra tremer
Cresci na roda de bamba, 
No meio da alegria 
EuniceMadrinha Eunice (1909-1995) foi a fundadora, nos anos de 1930, da mais antiga escola de samba em atividade de São Paulo: o Grêmio Recreativo Beneficente e Esportivo Lavapés (ver Silva & Baptista & Azevedo & Bueno, 2004) puxava o ponto
Dona OlímpiaA casa de Tia Olímpia localizada na Barra Funda era um dos principais núcleos de encontro de sambistas famosos no começo do século XIX respondia, 
SinháCacilda da Costa, conhecida como Dona Sinhá, foi esposa de Inocêncio Tobias, conhecido por Inocêncio Mulata por sair vestido de mulher no carnaval. Ambos foram responsáveis pelo retorno em 1952 do Grupo Carnavalesco Barra Funda (apelidado de Camisa Verde) sob o nome de Grêmio Recreativo Mocidade Camisa Verde e Branco, com sede na rua Conselheiro Brotero, Barra Funda, onde residiam. caia na roda, 
Gastando a sua sandália 
E a poeira levantava 
Com o vento das sete saiasSete Saias é o nome de uma pombagira muito conhecida na umbanda
Lá no terreiro tudo era alegria, 
Nego batia na zabumba e o boi gemia.


 
 
 

Em “Vá cuidar de sua vida”, Geraldo Filme descreve como a religião, o samba e outras manifestações estigmatizadas, porque originárias dos negros, passaram a ser valorizadas quando a classe média a elas aderiu, excluindo o próprio negro destas tradições:
 

 

Vá cuidar de sua vida
Diz o ditado popular 
Quem cuida da vida alheia
Da sua não pode cuidar

Crioulo cantando samba 
Era coisa feia
“Esse negro é vagabundo 
Joga ele na cadeia”
Hoje o branco está no samba 
Quero ver como é que fica
Todo mundo bate palmas 
Quando ele toca cuíca

Negro jogando pernada 
Negro jogando rasteira
Todo mundo condenava 
Uma simples brincadeira
E o negro deixou de tudo 
Acreditou na besteira
Hoje só tem gente branca 
Na escola de capoeira

Negro falava de umbanda
Branco ficava cabreiro
“Fica longe desse negro 
Esse negro é feiticeiro
Hoje o negro vai à missa 
E chega sempre primeiro
O branco vai pra macumba
E já é babá de terreiroNa umbanda, babá significa mãe-de-santo. No candomblé é uma abreviação de babalorixá (pai-de-santo)


 
 

Nesses sambas e em inúmeros outros produzidos nas últimas duas décadas, os temas religiosos associados ao mundo da rua e da sociabilidade negra nele presente mostram sua definitiva incorporação no cotidiano brasileiro.
 
 
 
 

Conclusão
 

No diálogo das religiões afrobrasileiras com a cultura nacional a música popular desempenhou um papel fundamental constituindo uma linguagem privilegiada em, pelo menos, dois planos: o melódico (entendido como um leque de ritmos executados no terreiro, suas variações e releituras fora dele) e o discursivo (entendido como o que as letras dizem ou conotam). Essa linguagem é constituída por um conjunto de símbolos que são articulados por compositores e cantores, com diferentes níveis de aproximação religiosa, que os interpretam e compõem seus repertórios segundo contextos musicais histórica e socialmente definíveis. Esses símbolos são decifráveis conforme os níveis de aproximação do ouvinte em relação às religiões afrobrasileiras. 
 
 
 

O repertório musical formado por estas múltiplas referências, diretas ou indiretas, ensina e atesta a capacidade da religião como sistema cultural apto a orientar condutas no dia-a-dia, configurando modos de ser e de viver reconhecíveis por seu ethos festivo e místico e que se espraia por outras dimensõese expressões culturais  (Amaral, 2002 [1992]). Expressa, ainda, uma relação de intimidade entre o indivíduo e suas divindades e das coletividades om o sagrado nas inúmeras festas e procissões realizadas no Brasil, como as de Iemanjá (“2 de fevereiro”) e Oxalá (Festa do Bonfim e Águas de Oxalá). 
 
 
 

Num plano, as mensagens das músicas, aqui exemplificadas por uma amostra restrita, enaltecem a magia (seja como forma de ataque ou defesa) como modo privilegiado de ação na resolução de conflitos de todos os tipos e como propiciatória para alcançar objetivos materiais ou transcendentais. Nesse plano o discurso sobre a religião parece tornar-se partilhável por um público maior, uma vez que foi por essa dimensão (da magia) que a religião se tornou socialmente marcada e conhecida. Noutro plano, mais profundo, essa linguagem musical é capaz de enunciar dimensões cosmológicas centrais às religiões afrobrasileiras como a humanização dos deuses e a divinização dos homens, vistas, por exemplo, nas canções que se referem ao mito em que Xangô rouba a esposa de seu irmão, ou como se vê na música “Milagres do Povo” quando afirma que os “deuses sem deus não cessam de brotar” e os milagres são dos homens. 
 
 
 

Sendo a música e a dança dimensões centrais das religiões afrobrasileiras (Amaral, 2002 [1992], Amaral & Silva, 1992), as expressões culturais que lhes são afins, ainda que aparentemente entendidas como não-religiosas, permanecem reconhecíveis também por essas vias. Assim, capoeira, o carnaval, afoxé, maracatu, jongo, congada, etc., são algumas destas expressões que, vistas em profundidade, podem se revelar como variações de uma estrutura que se repete em diferentes contextos e espaços. A religião é capaz de aglutinar ao seu redor tais expressões constituindo um conjunto mais ou menos orgânico de referências passíveis de serem entendidas e utilizadas como definidoras de uma “cultura negra”. A música popular brasileira ao buscar os elementos mais significativos dessa cultura reafirma o papel da religiosidade como fundante de um modo de ser brasileiro no qual sagrado e profano -  expressos na dança, na música, na magia, na festa, na comida, na luta etc. - não se apartam. Esse papel pode ser mencionado “de passagem” em algumas músicas ou representado como central na afirmação de identidades religiosas e/ou étnicas. De um modo ou de outro, o que parece ser uma constante nas representações musicais sobre a cultura nacional, enfocando as religiosidades de origem africana, é a visão da dinâmica que “funda” a identidade brasileira em termos de um “canto das três raças” marcado pela política das trocas simbólicas que compõem diferentes conjuntos de significados. A música de Caetano Veloso, significativamente intitulada “Feitiço”, sintetiza as várias direções dessas trocas ao retomar o samba composto por Noel Rosa e Vadico, “Feitiço da Vila” (1934), que parece querer mostrar as virtudes do samba de Vila Isabel “limpando-o” de alguns elementos que o caracterizariam em outros lugares:
 
 
 

Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos do arvoredo
E faz a lua nascer
Mais cedo

Lá em Vila Isabel quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São Paulo dá café, Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba

A Vila tem um feitiço sem farofa
Semvela e sem vintém
Que nos faz bem
Tendo o nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente que prende a gente

O sol na Vila é triste
Samba não assiste, porque a gente implora:
Sol, pelo amor de Deus não venha agora
Que as morenas vão logo embora
Eu sei tudo o que faço
Sei por onde passo
Paixão não me aniquila
Mas tenho que dizer:
Modéstia à parte, meus senhores
Eu sou da Vila!


 
 

Já na letra de "Feitiço", Caetano reafirma a força destes elementos num processo de mútua “antropofagia” em que “Zabé” (referência à princesa Isabel, que assinou a lei que extinguiu a escravidão no Brasil, e, também, ao nome da Vila Isabel) “come” Zumbi (o herói por excelência da luta contra a escravidão) e vice-versa:
 
 
 

Nosso samba
Tem feitiço
Tem farofa 
Tem vela e tem vintém
E tem também
Guitarra de rock'n'roll, 
Batuque de candomblé
Zabé come Zumbi
Zumbi come Zabé
Tem mangue bit, berimbau
Tem hip-hop, Vigário Geral
Tem reggae, pop, fundo-de-quintal
Capão Redondo, Candeal
Tem meu Muquiço, meu Largo do Tanque
Tem funk, o feitiço indecente
Que solta a gente
(Aquele abraço)

 

Nessa bricolagem de termos cujos significados rompem as fronteiras culturais, geográficas, econômicas, sociais e outras, em que periferias se tocam, ritmos coabitam, fundem-se, transformam-se - do mesmo modo que brancos e negros – o “feitiço” da música pode ser aquilo que prende e liberta. Nesse sentido, as religiões afrobrasileiras, como a guia rompida de Olorum derramada no chão privilegiado da música popular, vêm dispersando suas “contas” para todos os “cantos”, rearranjando-as ou somando-as a novas contas, em novos cantos, em novas guias.FIM