Nas décadas de 1970 e 1980, multiplicaram-se as gravações comerciais com temas afro. São deste período as canções que influenciaram o reconhecimento de  caráter secular e legítimo a essa religiosidade, pelo menos do ponto de vista musical. Eran, em geral, sambas retomando termos e temas utilizados em outras épocas, como feitiço amoroso e fortalecimento pessoal; agora, porém, de forma mais explícita. Era comum, do mesmo modo, cantores gravarem composições que fizessem referência às suas entidades protetoras, fossem ou não convertidos a essas religiões. O cantor Luiz Américo, por exemplo, compôs e cantou “Fio da Véia”, referindo-se à sua orixá Nanã:
 
 
 
 

Sou ‘fio da Véia  ô
Eu não pego nada
A Véia tem força
Na encruzilhada
Nao bati mais meu carro
Tem sempre uma grana
E mulher de montão
To sempre coberto dos pés à cabeça
Nego me encosta cai duro no chão
Com 7 pitadas da sua cacimba
marafo e dendê
banho de arruda todinho cruzado
Na minha horta só tem que chover
Sou ‘fio da Véia  ô
Eu não pego nada
A Véia tem força
Na encruzilhada
Quem quiser que acredite
ou então deixe de acreditar
a força que ela me deu
só ela é quem pode tirar.
Venço e não sou vencido
Aqui nesse reino
ou em qualquer lugar
 
Ruy Mauriti cantou seu orixá na música “Xangô, o vencedor”, composição dele e de José Jorge
 
 
 

Por detrás daquela serra
Tem uma linda cachoeira
É de meu pai Xangô
Que arrebentou sete pedreiras
Foi água nascendo na fonte
e espinho na flor
Do seu medo escondido
nasceu a coragem de ser vencedor
punhal na mão,
no peito o escudo mais fiel
de quem na terra concebeu o céu.
São 7 pedreiras que ele aprendeu a quebrar
Na faísca da fúria
no raio, na chuva
à luz do luar.
Lavou o corpo com o vinho amargo do suor
e fez do próprio bem
de todos males talvez o menor


 
 
 

  e “Nem ouro, nem prata”, em homenagem a Oxóssi
 
 
 
 

Eu vi chover, eu vi relampear
Mas mesmo assim o céu estava azul
Samborêpemba
folha de Jurema
Oxóssi reina
de norte a sul
Sou brasileira, faceira, mestiça, mulata
Não tem ouro nem prata
o samba que sangra do meu coração.
Tua menina de cor
pedaço de bom carinho
Entrei no teu passo, malandra
eu não sou como a tal Conceição.
Chega de tanto exaltar essa tal de saudade
meu caboclo moreno
mulato, amuleto do nosso Brasil
Olha, meu preto bonito,
te quero, prometo,
te gosto pra sempre
do samba-canção
ao primeiro apito do ano 2000”.

 
 

  Ronnie Von gravou “Cavaleiro de Aruanda
 
 
 
 

Quem  é o cavaleiro
Que vem lá de Aruanda
É Oxóssi em seu cavalo
Com seu chapéu de banda
Quem é esse cacique
glorioso e guerreiro
Vem montado em seu cavalo
descer no meu terreiro
Vem de Aruanda auê
Vem de Aruanda auá
Ele é filho do verde
Ele é filho da mata
Saravá, Nossa Senhora
A sua flecha mata.

 
 

Alguns artistas, de fato, se envolveram mais profundamente com a religião, mostrando sinais públicos de conversão, caso, por exemplo, de Clara Nunes e Luiz Américo. Este chegou a se apresentar em shows, durante certo período, inteiramente vestido de branco e protegendo, por preceito religioso, a cabeça raspada sob um boné.
 
 

A atitude desses cantores, tornando ou não pública sua conversão, reproduzia um comportamento comum na sociedade brasileira, em que as pessoas nem sempre revelam sua aproximação das religiões afro e os diferentes graus de envolvimento que com elas mantêm (Silva, 1995, Amaral, 2002 [1992]).
 
 

As músicas com esse tema tiveram diferentes influências na carreira dos cantores. Alguns tiveram grande e fugaz sucesso cantando-o e abandonando-o em seguida;  outros o incorporaram definitivamente a seu repertório. Entre os primeiros, podemos citar Cláudio Fontana, que cantou “Santo Forte”, dele e Tião da Vila:
 
 
 
 

Ah, não mexe comigo
Que eu ponho seu nome
lá no meu terreiro
Eu sou macumbeiro, lelê [...]

 
 
 

o grupo “Os Tincoãs”,  que gravou “Promessa ao Gantois”, de Mateus e Dadinho, e Ângela Maria, com "Moça Bonita", que apresenta, poeticamente, a entidade Pombagira, cujos domínios são as encruzilhadas em forma de T.
 
 
 

Uma rosa cor de sangue
Cintila em sua mão
Um sorriso que nas sombras
Não diz nem sim, nem não...
Põe na boca a cigarrilha
E mais acende o olhar
Que conhece o bem e o mal
De quem quiser amar...

De vermelho e negro, vestindo a noite,
o mistério traz
De colar de cor, de brinco dourado
a promessa faz
Se é preciso ir, você pode ir,
peça o que quiser
Mas cuidado, amigo:
ela é bonita, ela é mulher
 

E nos cantos da rua
Zombando, zombando, zombando está
Ela é Moça Bonita
Girando, girando, girando lá.

Oi girando, laroiê!
Oi girando, laroiê!
Oi girando, laroiê!
Oi girando,laroiê!
Oi girando lá...


 
 

Maria Creuza gravou “Odum”, de Walter Queiróz, e “Ossain (Bamboxê)”, “Oxossi rei”, “Catendê” e “Orô mi mayo”, de Antonio Carlos e Jocafi. Estes, unindo música e literatura, compuseram e gravaram “Jesuíno Galo Doido, sobre o velho malandro, personagem de "Os Pastores da Noite" (de Jorge Amado) que ao morrer ressurge como caboclo que incorpora apenas em belas iniciadas, nos terreiros baianos:
 
 

O lelê ô
lelê ô  leleoá
Quem mata o que não se come
Não perde por esperar

Jesuíno Galo Doido
Viveu de filosofia
Um malandro diplomado
Nos prazeres da folia

Cavalgando seu cavalo
Abram alas pra alegria!
Jesuíno é santo novo
Nos terreiros da Bahia

Saravá, saravá, saravá
Ele é santo, ele é rei, é orixá!


 
 
 
 

Wando, compositor romântico, gravou “Nêga de Obaluaiê”:
 
 
 

Nega de Obaluaiê
Essa nega fez feitiço - nega
Entregou meu nome ao santo - nega
E agora como faço?
Sem essa nega malandro
Sei que não posso viver
Essa nega tá querendo - nega
Querendo me segurar - nega
Perto dela sou criança
Não sei quem é meu santo forte
Nem sei quem é meu orixá

 
 

e, finalmente, a cantora Alcione  gravou “Canto do mar ”, de Totonho e Paulinho Resende
 
 
 
 

Quem vem lá
Da beira da manhã?
Iemanjá chegando
à procura de Iansã.

 
 
 
 

Entre os que incorporaram o tema à sua carreira, além dos já citados Clara Nunes e Martinho da Vila, estão João Bosco, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa, entre outros.
 
 
 
 

João Bosco, em parceria com Aldir Blanc, compôs um repertório cujas canções em geral aludem diretamente ao cotidiano popular, especialmente ao carioca. Neste contexto, o ethos afrobrasileiro (Amaral, 2002 [1992]), marcado pelo pensamento mágico, necessariamente surge com força em meio às intrigas amorosas, paixões por times de futebol, jogo do bicho, escolas de samba etc. “Incompatibilidade de Gênios”, por exemplo, mostra o feitiço amoroso, conhecido como amarração, como explicação dada pelo marido para manter-se preso à mulher com quem se declara incompatível.
 

 

Dotô,
Jogava o Flamengo e eu queria escutar
Chegou
Mudou de estação, começou a cantar.
Tem mais,
Um cisco no olho, ela em vez de assoprar,
Sem dó
Falou que por ela eu podia cegar.
Se eu dou,
Um pulo, um pulinho, um instantinho, no bar,
Bastou,
Durante dez noites me faz jejuar
Levou,
As minhas cuecas pr'um bruxo rezar.
Coou,
Meu café na calça prá me segurar
Se eu tô
Devendo dinheiro e vem um me cobrar
Dotô,
A peste abre a porta e ainda manda sentar
Depois,
Se eu mudo de emprego, que é prá melhorar
Vê só:
Convida a mãe dela prá ir morar lá
Dotô,
Se eu peço feijão, ela deixa salgar
Calor,
Mas veste casaco prá me atazanar
E ontem,
Sonhando comigo mandou eu jogar
No burro,
E deu na cabeça a centena e o milhar
Ah, quero me separar!
 
 


 

Já em “Coisa Feita” (sinônimo de feitiço, macumba e despacho) é a mulher quem enaltece seu poder de sedução pela magia de origem africana (vodu) o que a torna um avatar da “Princesa do Daomé”:
 

 
Sou bem mulher
De pegar macho pelo pé
Reencarnação da princesa do Daomé
Eu sou marfim
Lá das minas do Salomão
Me esparramo em mim
Lua cheia sobre o carvão
Um mulherão balagandã,
Cerâmica e sisal
Língua assim
A conta certa entre a baunilha e o sal
Fogão de lenha
Garrafa de areia colorida
Pedra sabão
Peneira e água boa de moringa
Sou de arrancar couro
De farejar duro
Princesa do Daomé
Sou coisa feita
Se o malandro se aconchegar
Vai morrer na esteira
Maré sonsa de Paquetá
Sou coisa benta
Se provar do meu aluá
Bebe o Pólo Norte
Retirado do samovar
Neguinho assim, ó!
Já escreveu atrás do caminhão
"A mulher que não se esquece
É lá do Daomé"
Faço mandinga
Fecho os caminhos
Com as cinzas
Deixo biruta
Lélé da cuca, zuretão, ranzinza
Pra não ficar bobo
Melhor fugir logo
Sou de pegar pelo pé
Sou avatar, Vodu
Sou de botar fogo
Princesa de Daomé.

 
 

A música “Boca de Sapo”, por sua vez, mostra novamente o envolvimento entre o amor e a magia, desta vez com o objetivo de morte como vingança pela traição. Nessa magia, a vítima é personificada num sapo que não podendo se alimentar, definha até morrer. Essa vingança é perpetrada sob a inspiração de Exu Caveira (associado à morte).
 
 
 

Costurou
Na boca do sapo um resto de angu
A sobra do prato que o pato deixou
Depois deu de rir feito Exu Caveira:-"uop! Marido infiel
vai levar rasteira..."
E amarrou
As pernas do sapo com a guia de vidro
Que ele pensava que tinha perdido
Depois deu de rir feito Exu Caveira: -"uop! Marido infiel
vai levar rasteira..."
Tu tá branco, Honorato, que nem cal,
Murcho feito o sapo, Honorato,
No quintal
Do teu riso, Honorato, nem sinal
Se o sapo dança, Honorato,
tu babau
Definhou
e acordou com o sonho contando a mandiga,
e falou pra doida: "meu santo me vinga".
Mas ela se riu feito Exu Caveira: -"uop! Marido infiel
vai levar rasteira"
Implorou:
"‘Patroa, perdoa, eu quero viver.
Afasta meus olhos de Obaluaiê"
Mas ela se riu feito Exu Caveira: -"uop! Marido infiel
vai levar rasteira"
Tá virando, Honorato, varapau,
seco como o sapo, Honorato
No quintal
Figa, reza, Honorato, o escambau
Nada salva o sapo, Honorato,
desse mal.

 
 

João Bosco amplia o uso do tema mostrando, mais  que o uso magia, do feitiço, as várias dimensões da religião na vida das pessoas. Em “Genesis”, composta com Aldir Blanc, vê-se a presença e influência dos orixás no destino de alguém desde o nascimento.
 
 

 
Quando ele nasceu
foi no sufoco...
Tinha uma vaca,
um burro e um louco
que recebeu Seu Sete...
Quando ele nasceu
foi de teimoso
com a manha e a baba do tinhoso
Chovia canivete...
Quando ele nasceu
Nasceu de birra...
Barro ao invés de incenso e mira,
Cordão cortado com gilete
Quando ele nasceu sacaram o berro,
Meteram faca,
Ergueram ferro...
Exu falou: ninguém se mete!
Quando ele nasceu  tomaram cana,
Um partideiro puxou samba...
Oxum falou: esse promete!

 

É possível pensar nessa letra, ainda, como uma analogia à “gênese” da própria sociedade brasileira, em que a pobreza impõe estratégias singulares ("ninguém se mete!) de sobrevivência e convivência de conflitos e de oposições. Apesar disso, pautada pelo gozo dos sentidos e pela festa (Amaral, 1998)  esta sociedade que se mantém capaz de sentir prazer (da cachaça e do samba, no caso) em tão dura realidade, é promissora, nas palavras da deusa do amor e da riqueza, Oxum.
 
 
 
 

Em “Tiro de Misericórdia” e “De frente pro crime”, (ambas compostas com Aldir Blanc), João Bosco retrata as múltiplas relações, em seus vários níveis, entre a magia e o dia-a-dia brasileiros. Essas são codificadas pelas noções de premonição, destino, vingança, violência, crime e paixão e os muitos imponderáveis aos quais as religiões são capazes de atribuir sentido. Na primeira canção,  espécie de “ópera afrobrasileira”, o menino nascido no morro, criado no eró (segredo) da macumba, com corpo fechado por babalaôs, enfrenta a polícia numa guerra real e mística, auxiliado pelos orixás que trazem seus “exércitos” de forças sobrenaturais simbolizadas nas flechas, lanças, abelhas, cobras, doenças etc. O menino representa aqueles aos quais só resta a vida “rasteira” (das ratazanas e lagartixas), dentro da qual se torna líder da contravenção (reizinho nagô, pé-de-chinelo). Ao mesmo tempo, sintetiza todo o sofrimento e luta dos excluídos em geral, fazendo o papel dos mártires, escravizados e resistentes contra a ordem dos dominantes (arcanjos velhos e coveiros do carnaval). Na guerra pela vida, suas estratégias de sobrevivência aliam a violência (com a qual responde à própria violência dos tiros inimigos) com a força inspirada pelos orixás em sua fé no corpo fechado. Questionando a violência de seu abandono pela sociedade e a necessidade de se lutar ainda mais contra o autoabandono, ele é sacrificado como um Cristo dos morros, que nao redime  seus iguais [falta-lhe a humanidade] . Ele é sacrificado como os animais no candomblé: representando a vida que se entrega esperando em troca  uma vida melhor para os humanos; e também os que entregam,, diariamente, suas vidas, na esperança de mudança da sorte no jogo do bicho.
 
 
 

O menino cresceu entre a ronda e a cana
correndo nos becos que nem ratazana
entre a punga e o afano,
entre a carta e a ficha
subindo em pedreira que nem lagartixa
Borel, Juramento, Urubu, Catacumba,
Nas rodas de samba, no eró da macumba
Matriz, Querosene, Salgueiro, Turano,
Mangueira, São Carlos, menino mandando,
Ídolo de poeira, marafo e farelo,
Um deus de bermuda e pé-de-chinelo,
Imperador dos morros, reizinho nagô,
O corpo fechado por babalaô
Baixou Oxalufã com as espadas de prata,
com sua coroa de escuro e de vício
Baixou Cão-Xangô com o machado de asa,
com seu fogo brabo nas mãos de corisco
Ogumiê se plantou pelas encruzilhadas
com todos seus ferros, com lança e enxada
E Oxossi com seu arco e flecha e seus galos
e suas abelhas na beira da mata
E Oxum trouxe pedra e água da cachoeira
em seu coração de espinhos dourados
Iemanjá, o alumínio, as sereias do mar
e um batalhão de mil afogados.
Iansã trouxe as almas e os vendavais,
adagas e ventos, trovões e punhais
Oxumaré largou suas cobras no chão
soltou sua trança, quebrou o arco-íris
Omolu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos
lançando a doença pra seus inimigos
E Nana-Buruquê trouxe a chuva e a vassoura
pra terra dos corpos, pro sangue dos mortos
Exus na capa da noite soltaram a gargalhada
e avisaram a cilada pros orixás
Exus, Orixás, menino, lutaram como puderam
mas era muita matraca e pouco berro.
E lá no horto maldito,
no chão do Pendura-Saia,
Zumbi, menino, Lumumba tomba da raia
mandando bala pra baixo contra as falanges do mal,
arcanjos velhos,
coveiros do carnaval
- Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
por que me abandonaram?
Por que nos abandonamos em cada cruz?
- Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
nem tudo está consumado
A minha morte é só uma:
Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus...
Grampearam o menino do corpo fechado
e barbarizaram com mais de cem tiros
Treze anos de vida sem misericórdia
e a misericórdia no último tiro
Morreu como um cachorro e gritou feito um porco
depois de pular igual a macaco
Vou jogar nesses três que nem ele morreu:
num jogo cercado pelos sete lados.

 
 

Na segunda canção, "De frente pro crime", um assassinato é o centro de cenas do cotidiano que se lhe sobrepõem, banalizando-o em favor das oportunidades que oferece. A analogia do tiro certo como um gol de futebol, os opostos que se tocam (malandro com trabalhador), o trabalho informal (do camelô e da baiana), o uso político da violência (o discurso do candidato a vereador) a fusão do sagrado com o profano (o santo incorporado numa personagem do carnaval), compõem um quadro visto com indiferença, da janela.
 
 
 

Ta lá o corpo estendido no chão
Em vez de rosto uma foto de um gol
Em vez de reza uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém
O bar mais perto depressa lotou
Malandro junto com trabalhador
Um homem subiu na mesa do bar
E fez discurso pra vereador
Veio camelô vender anel, cordão, perfume barato
E uma baiana pra fazer pastel
e um bom churrasco de gato
Quatro horas da manhã
baixou
o santo na porta-bandeira
E a moçada resolveu
parar
e então...
Sem pressa foi cada um pro seu lado
Pensando numa mulher ou num time
Olhei o corpo no chão e fechei
Minha janela de frente pro crime.

 
 
 
 

Eu vim da Bahia, mas algum dia eu volto pra lá
 

Até aqui vimos que a música popular brasileira foi, aos poucos, incorporando elementos da religiosidade afrobrasileira provenientes dos vários universos que a compõem. É inegável a presença predominante de elementos que remetem à umbanda, explicável pelo maior número de referências religiosas que a constituem, como as tradições africanas bantos, católicas populares, indígenas, orientais etc. Inclusive o ritmo de grande parte destas músicas é o samba. Segue, paralelamente, outro movimento, iniciado pelo Tropicalismo, de valorização da “fusão” de elementos culturais no qual o candomblé baiano é visto como referência por sua antiguidade. Nessa época o candomblé acentua o processo de legitimação iniciado nos anos de 1930, quando Dorival Caymmi e Carmem Miranda levaram os orixás para o grande público como um elemento de identidade brasileira.
 
 

Deste movimento sobressaíram os baianos Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa, cantando o candomblé do ponto de vista de quem vive num ambiente social marcado por valores desta religião. Em “Eu vim da Bahia”, Gilberto Gil expressou alguns deles:
 
 
 

Eu vim
Eu vim da Bahia cantar
Eu vim da Bahia contar
Tanta coisa bonita que tem
Na Bahia, que é meu lugar
Tem meu chão, tem meu céu, tem meu mar
A Bahia que vive pra dizer
Como é que se faz pra viver
Onde a gente não tem pra comer
Mas de fome não morre
Porque na Bahia tem mãe Iemanjá
De outro lado o Senhor do Bonfim
Que ajuda o baiano a viver
Pra cantar, pra sambar pra valer
Pra morrer de alegria
Na festa de rua, no samba de roda
Na noite de lua, no canto do mar
Eu vim da Bahia
Mas eu volto pra lá
Eu vim da Bahia
Mas algum dia eu volto pra lá

 
 

O candomblé que eles cantam é, sobretudo, o do rito queto, consagrado nas artes pelas obras de Jorge Amado e Carybé, entre outros, e, na academia, pelos trabalhos de inúmeros autores, entre eles Roger Bastide e Pierre Verger, que enalteceram este rito em termos de suas supostas fidelidade e pureza em relação às suas origens africanas (Silva, 2002).
 
 

O tratamento dado por Gilberto Gil e Caetano Veloso a esta temática significou uma sofisticação textual em consonância com suas posições estéticas de inserir a música popular brasileira num contexto mais amplo, incorporando influências rítmicas da época como o rock, o pop, o iê-iê-iê etc. A música “Batmakumba” é emblemática deste momento, tanto por sua letra concretista como por sua melodia.
 
 

Brincando com as palavras “bat” (morcego em inglês, mas também alusão ao verbo “bater”), “Batman” (o “Homem morcego”, super-herói norte-americano), makumba (variação de macumba, referência às religiões afro), “yêyê” (saudação à rainha Oxum e também uma alusão ao ritmo iê-iê-iê) e “obá” (referência ao rei Xangô e alusão à interjeição “oba!”) o verso “Batmakumbayêyê batmakumbaoba” adquire múltiplos sentidos. Entre eles, “bate macumba, rainha, bate macumba, rei”, indicando que no Brasil todos batem macumba. A palavra “batmakumba’, por sua vez, acoplando “Batman” com “macumba”, sugere que a magia é o nosso super-herói, a quem invocamos nas adversidades. A forma em “K” do poema-letra pode remeter, ainda, a um oxé (machado bifacial) de Xangô e, quando lido na vertical, a forma em “M” alude ao símbolo do Batman (um morcego de asas abertas) ou à letra inicial da palavra “Macumba”:
 
 


 
 
 
 
 
 














Gilberto Gil e Caetano Veloso nunca deixaram de cantar os elementos do candomblé; nem quando se voltaram para as religiões orientais, como o hinduísmo e o zen-budismo. Pelo contrário, estabeleceram paralelos e mostraram semelhanças entre os panteões citados em suas músicas, buscando a universalidade dos significados comuns entre esses universos religiosos. “Blues", de Caetano, e “Extra”, de Gil, entre outras, mostram isso:
 
 
 

Tem muito azul em torno dele
Azul no céu, azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
Os pés de lótus de Krishna
Tem muito azul em torno dela
Azul no céu, azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
As mãos de rosa de Iemanjá
O pé na Índia
A mão na África
O pé no céu
A mão no mar.

 
 
 

Em suas letras, os orixás aparecem como conteúdos particulares a serem apreendidos pelo público que toma contato com seus mitos e práticas, ou como forma de expressar conteúdos mais amplos, como as noções de justiça, equilíbrio, destino etc. Em “Logunedé”, de 1979, Gilberto Gil canta as características de seu próprio orixá, tornando-o conhecido do grande público.  E em “Oração ao Tempo”, também de 1979, Caetano Veloso canta esse inquice do rito angola, pouco conhecido fora dos terreiros.
 
 
 
 
 

É de Logunedé a doçura
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé - edé, edé
Tanta ternura
É de Logunedé a riqueza
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé - edé, edé
Tanta beleza
Logunedé é demais
Sabido, puxou aos pais
Astúcia de caçador
Paciência de pescador
Logunedé é demais
Logunedé é depois
Que Oxossi encontra a mulher
Que a mulher decide ser
A mãe de todo prazer
Logunedé é depois
É pra Logunedé a carícia
Filho de Oxum, Logunedé
Mimo de Oxum, Logunedé - edé, edé
É delícia.

 

Gil também intitulou alguns trabalhos com referências afrorreligiosas, como os LP “Gil Jorge OgumXangô”, de 1975, e “Um Banda Um”, de 1982. A música “Filhos de Gandhi”, gravada no primeiro deles, é uma síntese de sua visão da importância da presença das religiões afro na vida profana, inclusive o Carnaval:
 
 
 
 

Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré
Todo o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Iansã, Iemanjá, chama Xangô
Oxossi, também
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Mercador, Cavaleiro de Bagdá
Oh, Filhos de Obá
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Senhor do Bonfim, faz um favor pra mim
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi
Oh, meu Deus
do céu, na terra é carnaval
Chama o pessoal
Manda descer pra ver
Filhos de Gandhi.

 
 

Na música “Babá Alapalá”, Gilberto Gil canta um tema tabu no candomblé: o culto aos espíritos ancestrais chamados de Egunguns. Gil revela, dessa forma, sua intimidade com o universo religioso e com este culto secreto de origem ioruba, enfatizando, ainda, a busca das raízes místicas da identidade cultural afrobrasileira.
 
 
 

Aganju, Xangô
Alapalá, Alapalá, Alapalá
Xangô, Aganju
O filho perguntou pro pai:
‘Onde é que tá o meu avô
O meu avô, onde é que tá?’
O pai perguntou pro avô:
‘Onde é que tá meu bisavô
Meu bisavô, onde é que tá?’
Avô perguntou bisavô:
‘Onde é que tá tataravô
Tataravô, onde é que tá?’
Tataravô, bisavô, avô
Pai Xangô, Aganju
Viva egum, babá Alapalá!
[...]
Alapalá, egum, espírito elevado ao céu
Machado alado, asas do anjo Aganju
Alapalá, egum, espírito elevado ao céu
Machado astral, ancestral do metal
Do ferro natural
Do corpo preservado
Embalsamado em bálsamo sagrado
Corpo eterno e nobre de um rei nagô
Xangô.

 
 

Gilberto Gil e Caetano Veloso também gravaram cantigas de candomblé e umbanda. Em “Menina”, Gil aproveita os versos de domínio público de uma cantiga do candomblé, para compor uma canção sobre Oxum da Mina (um dos avatares desse orixá, provável alusão à Costa da Mina, região de embarque de escravos para o Brasil):
 
 

Ê, Menina
Ê, Menina
Iê Iê, Oxum da Mina
Ê, Menina
Ê, Menina
Ora, Iê iêu
Oxum da Mina [...]

 

Caetano Veloso também gravou algumas cantigas de domínio público, como "Ia Omi Bum" (cantiga de Oxum, no candomblé) e Marinheiro, que se refere a esta popular entidade da umbanda :
 
 
 

Eu não sou daqui
Marinheiro
Eu não tenho amor
Marinheiro só
Eu sou da Bahia
Marinheiro só
De São Salvador
Marinheiro só
Lá vem, lá vem
Marinheiro só
Como ele vem faceiro
Marinheiro só
Todo de branco
Marinheiro só
Com seu bonezinho
Marinheiro só
Ô, marinheiro, marinheiro
Marinheiro só
Ô, quem te ensinou a nadar
Marinheiro só
Ou foi o tombo do navio
Marinheiro só
Ou foi o balanço do mar
Marinheiro só.
 
Expressões do universo afrobrasileiro, como “saravá” (saudação), “axé” (força e energia), e “odara” (belo, bom e positivo), ganharam maior popularidade por seu constante uso na música popular brasileira. O adjetivo iorubaodara”, particularmente, é conhecido em todo o país a partir desta canção, de mesmo título, composta por Caetano Veloso:
 
 
 
Deixa eu dançar
Pro meu corpo ficar odara
Minha cara
Minha cuca ficar odara
Deixe eu cantar
Que é pro mundo ficar odara
Pra ficar tudo jóia rara
Qualquer coisa que se sonhara
Canto e danço, que dará.

 

Intimamente relacionadas com esses dois compositores pela origem baiana, Maria Bethânia (irmã de Caetano Veloso) e Gal Costa construíram um repertório no qual as religiões afrobrasileiras também foram marcantes. Foi na voz delas que o Brasil ouviu a música "Oração a Mãe Menininha", de Dorival Caymmi, reverenciando a célebre mãe-de-santo baiana Menininha do Gantois. Talvez por abordar o tema da maternidade, bastante privilegiado na cultura brasileira (vide o culto às Nossas Senhoras e à Mãe Preta), essa canção obteve grande êxito, contribuindo para o reconhecimento do terreiro do Gantois como uma das referências nacionais de candomblé, a partir dos anos de 1970.
 
 
 

Ai, minha mãe
Minha mãe Menininha
Ai, minha mãe
Menininha do Gantois
A estrela mais linda, hein?
Tá no Gantois
E o sol mais brilhante, hein?
Tá no Gantois
A beleza do mundo, hein?
Tá no Gantois
E a mão da doçura, hein?
Tá no Gantois
O consolo da gente, ai!.
Tá no Gantois
E a Oxum mais bonita, hein?
Tá no Gantois
Olorum quem mandou
Essa filha de Oxum
Tomar conta da gente
E de tudo cuidar
Olorum quem mandou ê ô
Ora iê iê ô... Ora iê iê ô...
 
 

Individualmente, Maria Bethânia e Gal Costa cantaram outras canções importantes para o conhecimento público do universo do candomblé. Em “As Ayabás, nome pelos quais são conhecidos os orixás femininos, Bethânia canta cantigas de umbanda dedicadas a Oxum, Iansã, Euá e Obá:
 
 

Nem um outro som no ar
Pra que todo mundo ouça
Eu agora vou cantar para todas as moças
Para todas Ayabás
Para todas elas.

Iansã comanda os ventos
E a força dos elementos
Na ponta do seu florim
É uma menina bonita
Quando o céu se precipita
Sempre princípio e o fim
Obá,
não tem homem quem enfrente
Obá,
a guerreira mais valente
Obá
Não sei se canto ou me iludo
Obá,
Noutra mão rédeas e escudo.
Obá
Não sei  se canto ou se não
Obá,
A espada na outra mão
Obá
Não sei se canto ou me calo
Obá
De pé sobre seu cavalo
Obá
Euá, Euá
É uma moça cismada
Que se esconde na mata
E não tem medo de nada.
Euá, Euá
Não tem medo de nada
O chão, os bichos, as folhas, o céu.
Virgem da mata, virgem da mata
Virgem dos lábios de mel
Oxum, hum, hum, hum
Doce mãe dessa gente morena
Água dourada,
Lagoa serena
Oxum hum, hum, hum
Beleza da força
Da força da beleza
Oxum hum, hum, hum
 
 
 
 

Além das muitas canções que gravou durante sua carreira, em que os orixás são mencionados, Bethânia dedicou um disco inteiro ao tema da brasilidade, intitulado “Brasileirinho”, de 2003, no qual, significativamente, elege várias canções alusivas às entidades do candomblé e da umbanda (Ossaim, Xangô, Calunga, Massemba, Mutalambô, Boiadeiro, Cabocla Jurema e Janaína) e do  catolicismo popular, sincrético, que também associa santos como Santo Antônio, São João e São Jorge a orixás como Ogum e Xangô).
 
 
 
 

Gal Costa, por sua vez, tornou a deusa do amor, Oxum, símbolo da cidade de Salvador ao cantar a canção composta por  Gerônimo Duarte  relevando a magia da cidade e o sedutor modo de ser de seu povo. A canção explica: em Salvador todo mundo “É d`Oxum” :
 
 
 

 
Nessa cidade todo mundo é d'Oxum
Homem, menino, menina e mulher
Toda a cidade irradia magia
Presente na água doce
Presente na água salgada
E toda cidade brilha
Seja tenente ou filho de pescador
Ou importante desembargador
Se der presente é tudo uma coisa só
A força que mora n'água
Não faz distinção de cor
E toda cidade é d' Oxum
É d' Oxum
É d' Oxum
Eu vou navegar
Eu vou navegar nas ondas do mar
Eu vou navegar nas ondas do mar

Iá aguibá Oxum aurá olu adupé