Foi conta pra todo canto.
Música popular e cultura religiosa afro-brasileira
 
 
 
 
 
 
 

Olorum se mexeu
Rompeu-se a guia de todos os santos
Foi Bahia pra todos os cantos [...]
E onde quer que houvesse gente
Brotavam como sementes
As contas desse colar
Hoje a raça está formada
Nossa aventura, plantada
Nossa cultura é raiz
(“Bahia de todas as contas”, Gilberto Gil, 1983)

 
 
 
 
Nas religiões afro-brasileiras a música é um elemento constitutivo do culto, dando forma a conteúdos inexprimíveis por outras linguagens. Todos os rituais do culto são apoiados também na música, que mostra um caráter estruturante das diversas experiências religiosas vividas por seus fiéis. Do paó (palmas usadas para reverência no candomblé) aos toques (xirê ou giras), a música faz parte de cada cerimônia, constituindo-a, delimitando situações e ordenando o conjunto das práticas extremamente detalhadas.
 
 
A  música é uma linguagem privilegiada na expressão dos valores destas religiões para si e, também, da identidade brasileira. São múltiplas as relações observáveis entre os valores e símbolos religiosos afro-brasileiros e vários contextos de construção da identidade musical nacional. Os termos comuns ou intercambiáveis destes campos semânticos revelam  trocas simbólicas importantes na construção do ethos nacional. Este ethos, por sua vez, incorpora e privilegia a musicalidade e tudo o que ela permite de  extravasamento emocional e  utilização do corpo de modo comunicativo e sensual.
 
 
Embora os ritmos e melodias de inspiração africana desempenhem papel fundamental para o êxito das canções aqui apresentadas, abordaremos exclusivamente as mensagens contidas nas letras das músicas, deixando de lado seu aspecto sonoroAs letras analisadas foram coletadas por meio de pesquisa em encartes dos discos e CDs e audição destes quando o material  impresso era inexistente ou apresentava dúvidas em relação à   letra efetivamente cantada pelos intérpretes. A pesquisa abrangeu  consultas em acervos de várias instituições, entre as quais  destacamos o Museu da Imagem e do Som (MIS), de São Paulo e   Rio de Janeiro; a Discoteca Oneyda Alvarenga do Centro Cultural  São Paulo e o Instituto de Estudos Brasileiro (IEB) da USP, além  de sites na Internet dedicados à musica popular brasileira.

 
 
 
 

No terreiro de “preto-veio”, Iaiá, vamos saravá!
 
 

Para entender a construção da identidade cultural brasileira nas primeiras décadas do século XX e sua relação com a cultura musical do país neste período é preciso lembrar, também, a então recente proclamação da República, em 1889, quando foi instalado um governo provisório que procedeu a uma grande naturalização dos habitantes do país. Passaram  à condição de brasileiros todos os estrangeiros aqui residentes que não manifestassem desejo de permanecer com a antiga nacionalidade. A Igreja separou-se do Estado. O casamento e o registro civil foram regulamentados. Os cemitérios foram secularizados. Reformou-se o Código Criminal (1890) e a organização judiciária do país. O mesmo se deu com o ensino e o sistema bancário. Foi modelada nova Constituição para a nação.O primeiro presidente civil eleito por voto direto, Campos Sales, assumiu o governo do  país entre 1898 e 1902. Surgia um Brasil que buscava feições próprias no espelho mundial,  afirmando sua identidade perante um mundo  em transformação. Era preciso redefinir as noções de povo e nação "brasileiros". A substituição da mão de obra escrava pela estrangeira, imigrante, trouxe novos valores e símbolos culturais ao país que, juntamente com a industrialização fizeram surgir novas forças sociais que procuravam seu lugar e legitimidade na sociedade brasileira.

 
 
Nesse período, como atestam os jornais e outros documentos, havia grave rejeição, por parte de segmentos dominantes da sociedade, às práticas religiosas afro-brasileiras. Atribuía-se a elas o caráter de “selvageria” e de empecilho ao desenvolvimento de uma "civilização brasileira". A “lascívia das danças” e o “estrondoso barulho”Veja, entre outros, Raimundo Nina Rodrigues - Os africanos  no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977, e Jocélio  Teles dos Santos, Divertimentos estrondosos: batuques e sambas   no século XIX. In: Lívio Sansone & Jocélio T. dos Santos - Ritmos em transe. Sócio-antropologia da música baiana. São Paulo,  Dynamis Editorial, 1997das batucadas eram exemplos, constantemente citados, da suposta inaptidão dos negros para a "civilização".
 
 
Esta situação de discriminação e repressão aos cultos afro-brasileiros colocou-os, do mesmo modo que à sua música, na situação de clandestinidade até as primeiras décadas do século XX. Entretanto, isto não impediu que a musicalidade sacra dos terreiros permeasse diferentes estilos musicais transitando entre os os domínios do sagrado e do profano. Essa permeação vem constituindo uma parte significativa da cultura musical brasileira sob diferentes formas ao longo dos vários contextos históricos. A incorporação dos ritmos africanos dos terreiros ao repertório musical brasileiro  se expressa  em estilos musicais populares como o lundu, maxixe, coco, lelê, tambor-de-crioula, “sotaques” de bumba-meu-boi, jongo, maculelê, maracatu, afoxé e o samba, entre muitos outrosFontes: lundu, coco, lelê,  jongo,  maracatu, afoxé: www.minc.gov.br/projeto maxixe tambor-de-crioula, vídeo “sotaques” de bumba-meu-boi, vídeo maculelê vídeo Daruê.
 

 
No caso do samba - bom exemplo por sua relevância e presença como um dos elementos constitutivos do gosto nacional e da identidade brasileira -, sabe-se que sua origem está ligada à música religiosa dos grupos bantu trazidos para o Brasil. Esse ritmo, tocado em terreiros de candomblé (geralmente os de rito “angola” ) e, posteriormente, na umbanda, constitui um dos principais elementos de identidade dessas religiões. Sendo música religiosa, o samba enredou-se, contudo, nos espaços profanos, num intenso fluxo de trocas simbólicas entre as religiões afro-brasileiras e a sociedade.
 
 
Trecho da rua Visconde de Itaúna, em 19 de julho de 1941, pouco antes de ser demolido para a abertura da Avenida Presidente Vargas inaugurada em 1944. Único documento fotográfico da casa de Tia Ciata, assinalado pelo número 119 (Embora os livros que tratem do assunto indiquem o número 117, a descrição dos que frequentam a casa corresponde ao 119) (AGCRJ, Fotógrafo não identificado). Fonte: http://flaviorio.globolog.com.br/Pca%20Onze%20Tia%20Ciata.jpgNo Rio de Janeiro este entrelaçamento é perceptível pelo menos desde as últimas décadas do século XIX, quando dos núcleos religiosos surgiram compositores que consolidaram esse ritmo e o disseminaram entre o grande públicoSobre esse processo, veja Roberto Moura, Tia Ciata e a Pequena África no Brasil. Rio de Janeiro, Funarte, 1983; Hermano Vianna - O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge  Zahar, 1995; Letícia Reis, Na Batucada da Vida - samba e política  no Rio de Janeiro (1889-1930). São Paulo, FFLCH/USP. Tese de  Doutorado, 1999; entre outros. Alguns destes compositores eram filhos das famosas “tias”Termo pelo qual eram conhecidas as   mães-de-santo e outras ebômis (iniciadas que atingiram a senioridade) nos candomblés e na umbanda  em torno das quais a colônia de migrantes baianos no Rio Janeiro se reunia para dançar, cantar, comer comidas baianas e cumprir as obrigações rituais para com seus orixás. Tia Ciata, que se estabeleceu na imediações da Praça XI, um conhecido reduto do samba carioca, foi a mais famosa delas. Assim, nesses espaços reuniam-se, entre outros, compositores que se tornariam famosos na história da música popular brasileira como Donga (filho de “Tia” Amélia), João da Baiana (filho de “Tia” Perciliana), SinhôSinhô está entre os mais  importantes sambistas da primeira fase da MPB. Suas músicas eram bem recebidas e ele circulava por ambientes luxuosos e  favelas. Dizia-se que levava seus sambas ao terreiro para serem rezados por uma mãe-de-santo. Manuel Bandeira, no texto O  enterro de Sinhô, registra estas relações por meio das presenças no velório do compositor: Seu corpo foi levado para o necrotério  do Hospital Hahnemanniano, ali no coração do Estácio, perto do  Mangue, à vista dos morros lendários... A capelinha branca era   muito exígua para conter todos quantos queriam bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá  estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de  altura com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas... Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste deliciosamente mesmo na hora do enterro. [...]. Bebe-se desbragadamente. Um vaivém incessante da capela para o botequim. Os amigos repetem piadas do morto, assobiam ou cantarolam os sambas (Tu te lembra daquele choro?). [...]. Não tem ali ninguém para quebrar aquele quadro de costumes cariocas, seguramente o mais genuíno que já se viu na  vida da cidade: a dor simples, natural, ingênua de um povo  cantador e macumbeiro em torno do corpo do companheiro que durante tantos anos foi por excelência intérprete de sua alma  estóica, sensual, carnavalesca (Bandeira, 1966:11).  e  Pixinguinha. Cujo apelido era Ogum Bexiguento por ser filho do orixá Ogum e ter a pele marcada pela varíola que contraíra na  infância. Veja Marília T. Barboza da Silva &, Arthur L. de Oliveira Filho - Filho de Ogum Bexiguento. Rio de Janeiro, Funarte, 1979  (o “Rei do samba”) e  Pixinguinha. Donga dizia que seus pais:
 
 
[...] cantavam muito, pois sempre estavam dando festas de candomblé; as baianas da época gostavam de dar festas. A Tia Ciata também dava festas. Agora, o samba era proibido e elas tinham que tirar uma licença com o Chefe de polícia. Era preciso ir até a Chefatura de Polícia e explicar que ia haver um samba, um baile, uma festa enfim. Daquele samba saía batucada e candomblé, porque cada um gostava de brincar à sua maneira. (Moura, 1983:63).
 
 

A convivência nesses espaços permitia que a comunidade compartilhasse tradições importantes para sua manutenção como grupo de identidade e para a valorização de sua auto-imagem, além de constituir uma das estratégias de sobrevivência material na sociedade marcada por discriminações e desigualdades econômicas e sociais. O pequeno comércio, ambulante ou nas quitandas, garantia às mulheres uma certa independência em relação aos homens. Tia Perciliana, por exemplo, vendia artigos afro-brasileiros e Tia Ciata, comida baiana. Aos homens geralmente restavam os trabalhos braçais pouco remunerados como a estiva, ou, pior: a situação de desemprego. Essa vida à margem impulsionava-os, muitas vezes, a adotar, entre as  estratégias de sobrevivência, a de  arriscar a sorte nas várias formas do jogo de azar ou em pequenos golpes e expedientes escusos, cuja prática ficaria conhecida como “malandragem”Muito cantada na música brasileira, de Noel Rosa  a Zeca Pagodinho, de Moreira e Bezerra da Silva a Chico Buarque, caracterizando seu praticante, o “malandro”, como personagem  reconhecida entre os tipos populares deste período.

 
 
As letras dos sambas, cantadas ao fim das “rodas de santo” nas casas das tias baianas, ou nos encontros festivos populares, como a Festa da Penha, refletiam o cotidiano dos grupos negros do Rio de Janeiro e a própria importância da música neste cotidiano. Descrevem, entre outros temas, a pobreza, os amores, traições, a malandragem, a comida, o jogo, a política, conflitos com a polícia, e, permeando tudo isso, freqüentemente, o papel da macumba e do feitiço como instrumentos de interferência em favor próprio nas vicissitudes do dia-a-dia.
 
 
É, portanto, coerente, que desde as primeiras gravações seja possível identificar nas letras das músicas esses temas, como no caso do samba “Pelo Telefone” (de Donga e Mário de Almeida), gravado por Bahiano, em 1917, em cuja lírica o jogo e a disputa amorosa se entremeiam com  o feitiço:
 
O Chefe da Folia
Pelo telefone manda me avisar
Que com alegria
Não se questione para se brincar

Ai, ai, ai
É deixar mágoas pra trás, ó rapaz
Ai, ai, ai
Fica triste se és capaz e verás

 
Tomara que tu apanhes
Pra não tornar fazer isso
Tirar amores dos outros
Depois fazer teu feitiço

Ai, se a rolinha, Sinhô, Sinhô
Se embaraçou, Sinhô, Sinhô
É que a avezinha, Sinhô, Sinhô
Nunca sambou, Sinhô, Sinhô
Porque este samba, Sinhô, Sinhô
De arrepiar, Sinhô, Sinhô
Põe perna bamba, Sinhô, Sinhô
Mas faz gozar, Sinhô, Sinhô

O “Peru” me disse

Se o “Morcego” visse
Não fazer tolice
Que eu não caísse
Nessa esquisitice
De disse-não-disse
 
Ai, ai, ai
Aí está o canto ideal, triunfal
Ai, ai, ai
Viva o nosso Carnaval sem rival
 
Se quem tira o amor dos outros
Por Deus fosse castigado
O mundo estava vazio
E o inferno habitado
 
Queres ou não, Sinhô, Sinhô
Vir pro cordão, Sinhô, Sinhô
É ser folião, Sinhô, Sinhô
De coração, Sinhô, Sinhô
Porque este samba, Sinhô, Sinhô
De arrepiar, Sinhô, Sinhô
Põe perna bamba, Sinhô, Sinhô
Mas faz gozar
 
Quem for bom de gosto
Mostre-se disposto
Não procure encosto
Tenha o riso posto
Faça alegre o rosto
Nada de desgosto
 
Ai, ai, ai
Dança o samba
Com calor, meu amor
Ai, ai, ai
Pois quem dança
Não tem dor nem calor
 
 
Os temas relacionados à religião não aparecem apenas incidentalmente nas letras das músicas destas primeiras décadas; ganham também lugar de destaque, como acontece em “Sete Flechas” (composição de Freitas Guimarães), gravada em 1928 por Francisco Alves, um dos mais populares cantores brasileirosFrancisco Alves era grande amigo de notórios macumbeiros  compositores como Bahiano, Sinhô, Pixinguinha, Assis Valente e  outros, de cujas composições foi intérprete. É interessante notar, na letra dessa música, a presença de termos como “corpo fechado” e “santo forte”, desde esse período, transmitindo a noção de que essa religiosidade era capaz de oferecer proteção espiritual e estabelecer poderosos mecanismos de autoconfiança.
 


Até meu nome
Já botaram na macumba
Pois me contaram
Lá não fui nem vi
Que a macumba é da boa
No ponto de Catumbi.
Até meu nome
Já botaram na macumba
Ô macumbeiro,
Tu tens é pouca sorte
O meu corpo é fechado
O meu santo é muito forte.
Até meu nome
Já botaram na macumba
Tu tens cara de bobo

O ditado é tão certo
Que lobo não come lobo!
 


Os candomblés e umbandas surgem, nas canções deste período, ainda, como ambientes significativos para a sociabilidade e auto-afirmação dos grupos pobres, negros e mestiços, associados aos morros e subúrbios. Além do bairro do Catumbi, a Pavuna também foi cantada como reduto de macumbeiros e sambistas. Em “Na Pavuna” (1929), de Candoca da Anunciação e Almirante, que seria um enorme sucesso na voz deste e do Bando de Tangarás em 1930, percebe-se claramente a simbiose entre esses grupos (“gente reiúna” ou "ralé")O termo também era empregado em relação a tudo que dizia respeito aos soldados: farda reiúna, bota reiúna, no sentido de farda ou bota militar  (João Máximo e Carlos Didier - Noel Rosa uma biografia. Brasília, Linha Gráfica, 1990& Didier, p.103)., as religiões afro-brasileiras e o samba. "Na Pavuna" foi, ainda a primeira música na história da música popular brasileira a ser gravada com instrumentos de percussão. Esses instrumentos (timba, pandeiro, ganzá, reco-reco, tamborim, atabaques e surdo, entre outros) não eram usados nos estúdios, permanecendo restritos às escolas de samba e grupos de sambistas. Segundo Edigar de Alencar (1985:194),  outra inovação de “Na Pavuna” foi o uso oficial, pela primeira vez, da expressão "batucada". O termo, contudo, já era usado nas rodas de samba e o próprio Sinhô designou com ele sua composição “Oju Burucu”, de 1925.

 
Na Pavuna, na Pavuna
Tem um samba que só dá gente reiúna
O malandro que só canta com harmonia
Quando está metido em samba de arrelia
Faz batuque assim no seu tamborim
Com o seu time enfezando o batedor
E grita a negrada: vem pra batucada!
Que de samba na Pavuna tem doutor
Olá, Seu Nicolau quer mingau
Na Pavuna tem escola para o samba
Quem não passa pela escola não é bamba


Na Pavuna tem canjerê também
Tem macumba, tem mandinga e candomblé
Gente da Pavuna só nasce turuna
É por isso que lá não nasce "mulhé”.
 
 

Esta centralidade da religião também como espaço de sociabilidade dos grupos de negros e de brancos pobres parece , com ênfase, na letra de “Yaô”, composta por Gastão Vianna e PixinguinhaCujo apelido era Ogum Bexiguento por ser filho do orixá#  Ogum e ter a pele marcada pela varíola que contraíra na infância.,  gravada por este em 1938.
 
Akikó no terreiro
Tendo adié
Faz inveja a essa gente
Que não tem muié
No jacutá de preto-véio
Há uma festa de yaô
Lá tem nega de Ogum
de Oxalá, de Iemanjá
Mocamba de Oxóssi (Ê caçador!)
Ora, viva Nanã, Nanã Borocô!
Ki ô, Ki ô
No terreiro de preto-véio, Iaiá
Vamos saravá
A quem meu pai?
Xangô!
 
 
Esta música, gravada num período em que as religiões afro-brasileiras eram reprimidas até com violência,Um exemplo disso foi a Missão de Pesquisas Folclóricas, concebida por Mário de Andrade, que em 1938 percorreu o norte e o nordeste brasileiros e para gravar as músicas dos terreiros teve de exibir uma autorização policial refere-se a uma festa de iaô (cerimônia iniciática do candomblé) aludindo à sociabilidade que se estabelece nos terreiros. Usa para isso termos africanos como iaô (iniciada), akikó (galo), adié (galinha), jacutá (terreiro) e nomes de orixás e outras entidades espirituais como Oxalá, Ogum, Preto-velho, Xangô etc. Ela insinua que nos terreiros, nas festas, ninguém está só; até o galo tem sua companheira. Percebe-se, também, nessa composição, os valores religiosos sendo afirmados para o próprio grupo e para a sociedade mais ampla, um dos processos pelos quais parcelas de significado religioso foram, aos poucos, transmitidas para outros espaços, mais abertos, da cultura. As opções de convivência social eram bastante restritas para esses grupos, por não terem acesso livre a espaços públicos quaisquer (ou serem desestimulados a freqüenta-los), como magazines, restaurantes, teatros e cinemas, embora o fizessem na condição de empregados e de artistas. Portanto, os terreiros, com sua sacralidade festiva e musical, receptividade e comensalidade, terminaram por desempenhar o papel de núcleo de sociabilidade e de lazer que até hoje representam para certos grupos pobres, migrantes, muitas vezes estigmatizados e desamparados socialmente. Passaram a ser, também, lugares de divertimento e de encontro e, conseqüentemente, de busca de parceiros para a amizade ou para o amor (Amaral, 2002 [1992]).
 
A trajetória de um dos importantes compositores da época, João Paulo Batista de Carvalho, conhecido como  J. B. de Carvalho, é paradigmática da relação contraditória de aceitação e negação da religiosidade afro-brasileira tanto nos espaços públicos como nos privados. “O Batuqueiro Famoso”, como também era conhecido, liderava o Conjunto Tupi (nome que significativamente também faz referência à presença indígena nas representações religiosas afro-brasileiras) com o qual se apresentava em programas de rádio chegando a ter, inclusive, seu próprio programa dedicado à divulgação da umbanda. No rádio fez sucesso cantando pontos de macumba, como “Cadê Viramundo”, de sua autoria, lançada em 1931:
 
Ô, cadê Vira Mundo, Pemba?
Ta na terrêra, Pemba
Com seu cambono, Pemba
Veado no mato corredor


Cadê meu mano caçador?
Cadê caboclo Ventania?
Esse caboclo nosso guia

Galinha de preta na encruzilhada
Gato de preto de madrugada
Azeite de dendê
Farofa amarela
Com três vintém
Numa panela.
 
Caboclo Vira Mundo e Ogum Rompe-Mato eram as entidades  que J. B. de Carvalho incorporava, na umbanda. Antes de se converter a esta religião, no entanto, o cantor fora policial e dizia ter participado de muitas diligências feitas aos terreiros. Numa delas teria sido baleado e, a partir desse episódio, passado a sentir estranhas sensações pelo corpo, sinais de sua mediunidade, que foi, então, desenvolvida num terreiro de umbanda da Praça Onze, no Rio de Janeiro. Destas entidades afirmava ter recebido a incumbência de ser o porta-voz da umbanda, papel que desempenhava por meio da música. Durante seu programa de rádio algumas pessoas no auditório entravam em transe em razão das orações e dos pontos de umbanda cantados. Por este motivo, a polícia invadia o auditório levando o cantor presoInformações da entrevista de J.B. de Carvalho concedida a Gazeta de Notícias (7/7/1968). Veja também Enciclopédia da Música Popular Brasileira. Nas décadas de 1930 e 1940, J. B. de Carvalho gravou grandes sucessos de carnaval, mas foram os  batuques de terreiro que marcaram sua carreira. “Cadê Vira Mundo”, por exemplo, foi executada no filme "Uma Noite no Rio de Janeiro” e gravada pelo pianista Carmen Cavallaro. Em 1941, gravou “Ponto de Caboclo Rompe-Mato” e “Pai Xangô”, e, em 1943, “São Jorge Guerreiro”. A partir da década de 1950 reuniu suas composições ou adaptações de pontos de umbanda nos LPs “Terreiros e Atabaques” (circa 1955); “Batuque” (circa 1958), com as gravações de “Cadê Vira Mundo” e “Yaô”, de Pixinguinha e Gastão Vianna; “O Rei da Macumba Xangô Dzakutá” (circa 1960) e “J. B. de Carvalho e seu terreiro”, de 1978. Nas capas de seus discos  elementos da estética religiosa umbandista estavam sempre presentes. O registro do gênero musical, atribuído pelas gravadoras aos fonogramas de J. B. de Carvalho com temática umbandista os indica como sendo “macumba”, “batuque” ou “jongo”. No LP “Batuque”, por exemplo, “Cadê Vira Mundo” é registrado como “jongo” e “Yaô” como “batuque”Agradecemos a Marcelo Nastari e a Arthur Rovida de Oliveira pelas informações sobre o cantor.Ainda que passível de polêmicas, o registro destes gêneros demonstra o reconhecimento e a importância que vinham assumindo como estilos próprios no mercado fonográfico a partir dos anos de 1930. E a crescente tematização deste universo religioso por meio destes estilos foi, como se verá, fundamental para a sua familiarização em âmbito nacional.
 
O Rio de Janeiro, por seu caráter cosmopolita, teve um papel de centro propulsor neste processo. Na música “Cais Dourado” (composta por Sinhô e gravada por Mário Reis e por Brenno Ferreira, em 1929), vê-se, inclusive, a população carioca ser enaltecida como a articuladora pioneira de várias tradições artístico-musicais (samba, embolada, coco etc) e religiosas (mandinga e jongo). A Bahia, por sua vez, tendo sido o local de origem das tias e de muitos compositores, também aparece exaltada.
 
 
É ligeiro o carioca,
Quando sabe pontear,
De seu pinho faz viola,
E decide sem parar
Que no samba ou desafio,
Embolada ou batucada,
Na mandinga e no coco,
Vai até a madrugada,
No cateretê falado
E no jongo disputado,
Dentro do Brasil inteiro
Carioca é o primeiro.
Ai, como é bom saber cantar,


E da viola pontear.

Se consagro a Bahia,
É porque tem seu valor,
É terra da folia,
Onde lá fui cantador,
No falado Cais Dourado,
Onde samba tem calor
Tem o gunga no bailado
Descrevendo a minha dor
Bem no fundo do tantã,
Ouço o grito da canaia,
Na fungaMais conhecido como punga, é uma modalidade de samba-de-roda cantado, com solo coreográfico e umbigada, também chamado de ponga ou  tambor-de-crioula. Em alguns lugares expressa exclusivamente a umbigada  com a qual se convoca alguém para entrar no samba-de-roda de fandango,
Da baiana de sandaia.
 
 
 

 
As circularidades culturais entre a Bahia e o Rio de Janeiro se intensificaram ao longo das décadas. Quase setenta anos mais tarde, outra música ("Onde o Rio é mais baiano"), de outro baiano (Caetano Veloso), expressaria o vigor dessa afinidade como um espelho onde Rio e Bahia se reconhecem:
 
 
A Bahia,
Estação primeira do Brasil
Ao ver a Mangueira nela inteira se viu,
Exibiu-se sua face verdadeira
Que alegria
Não ter sido em vão que ela expediu
As Ciatas pra trazerem o samba pra o Rio
(Pois o mito surgiu dessa maneira)
E agora estamos aqui
Do outro lado do espelho
Com o coração na mão
Pensando em Jamelão no Rio Vermelho
Todo ano, todo ano
Na festa de Iemanjá
Presente no dois de fevereiro
Nós aqui e ele lá
Isso é a confirmação de que a Mangueira
É onde o Rio é mais baiano.
 
Com o advento do rádio no Brasil, em 1922, tornando-se um privilegiado meio de comunicação,  a programação, até então restrita à música erudita e de veiculação local, passou a contemplar gêneros mais populares, inclusive o samba. A divulgação destes gêneros, se por um lado encontrava um público disposto a consumi-los, causava, por outro, indignação em certos segmentos sociais, como se vê nesta carta enviada a um programa de rádio:
 
“Nossos ouvintes já se acham fatigados de tantas emboladas, rumbas, fox e sambas, que mais parecem música de negros em dia de candomblé”Enciclopédia Nosso Século, vol 3, 1930/1945, São  Paulo, Editora Abril Cultural, 1980, pág. 62.
 
Nessa época, as reformas políticas e econômicas que ficaram conhecidas como Estado Novo buscavam estabelecer as bases de um Estado “genuinamente” nacional. Isso incluía a valorização e promoção das práticas culturais “brasileiras” capazes de congregar o sentimento de unidade da naçãoEssa busca pelo Brasil e seu  jeito de ser e viver tem suas bases no movimento modernista da  década anterior, no qual o interesse pelo nacional inspira uma renovação artístico-intelectual que procura fugir aos cânones  europeus de produção em termos de novos temas e técnicas.  Essas proposições encontraram na radiodifusão o melhor meio de propaganda e divulgação. Operando de forma seletiva sobre alguns elementos da cultura afro-brasileira, promoveu-os ao status de valores nacionais. Esse projeto obteve ampla ressonância, dadas as condições do momento histórico em que os vários grupos sociais procuravam conquistar espaços de legitimidade; especialmente as camadas pobres, majoritariamente negras e mestiças. No campo das artes, em que a criatividade é o patrimônio principal, estes grupos obtiveram maior reconhecimento e souberam capitalizar seus talentos em proveito da mobilidade socialMuitos cantores e compositores que obtiveram grande êxito à época eram negros. Nesse processo foi significativo o fato de a divulgação de suas composições e de suas belas vozes se dar num veículo sem  imagem, o rádio, o que permitia, muitas vezes, eludir à avaliação do público consumidor a condição racial destes artistas..
 
Foi nesse período que a cultura popular, permeada de elementos afrobrasileiros começou a ser desestigmatizada, ainda que de froma contraditória. O carnaval recebeu apoio do Estado, mas devia exaltar temas da história oficial em seus enredos; a capoeira se tornou “esporte nacional”, mas de  forma "disciplinada". Também o papel social destas práticas culturais ganhou destaque no meio acadêmico brasileiro  e estrangeiro. Exemplo disso foram a inclusão dos estudos afrobrasileiros entre as disciplinas das faculdades que se formavam nesse período, a publicação de inúmeros livros  sobre o tema (sobretudo na coleção Biblioteca de Divulgação Científica, dirigida por Artur Ramos) e a realização, nos anos de 1930, de dois Congressos Afro-Brasileiros dos quais participaram juntos intelectuais e sacerdotes das religiões de origem africana (Silva, 2002).
 
Neste contexto, a música popular parece constituir  uma espécie de “fio” que costura as várias experiências das classes pobres, expressando valores que lhes são próprios e caros como a ginga do corpo, a malícia, a astúcia, a sedução, a beleza e a magia. Os estereótipos da baiana, da mulata e do malandro simbolizaram estes valores em âmbito nacional e internacional, forjando, com a ajuda do rádio, do disco e do cinema, a própria imagem do Brasil e do “South American Way”. Carmem Miranda e o Bando da Lua foram, provavelmente, a mais conhecida expressão desses estereótipos no campo das artes musicais populares.
 

 
 
 
 
"O que é que a baiana tem?" Religião e consolidação da música popular brasileira
 
 


A Bahia e as baianas foram temas recorrentes na música popular e que se projetaram nacionalmente a partir do Rio de Janeiro, como já foi dito, onde se encontravam as grandes casas de espetáculo, boates, cassinos, gravadoras, estações de rádios etc. Essa exaltação à Bahia pode ser entendida pela presença massiva de baianos migrados para o Rio de Janeiro, atraídos pelo processo de desenvolvimento urbano e econômico da então capital federal. A figura das “tias” baianas (com suas roupas típicas) nos terreiros, no carnaval (desde a formação dos primeiros ranchos e, posteriomente, na formação da ala das baianas nas escolas de samba), nas festas populares e nas ruas da cidade vendendo comida baiana foi sintetizada  em Carmem Miranda constituindo a imagem que se tornaria um dos símbolos do Brasil. Tendo sido convidada para cantar a música de Dorival Caymmi “O que é que a baiana tem?”, no filme “Banana da Terra”, de 1939, o figurino da baiana com a qual surgiu nas telas foi extremamente apreciado e daí em diante Carmen “tornou a baiana internacional”, recriando a imagem das filhas-de-santo do candomblé em várias estilizaçõesEm fins de 1938 Carmen Miranda teria se apresentado pela  primeira vez vestida de baiana no Cassino da Urca, cantando Na Baixa do Sapateiro, de Ari Barroso. O figurino para a apresentação teria sido um presente e marcaria a imagem da mulher brasileira em todo o mundo. (Marcos Antônio Marcondes. (Ed). Enciclopédia da Música popular brasileira: erudita, folclórica e popular. 2ª; edição. São Paulo: Art Editora/Publifolha, 1999).. A partir de então,  no processo de construção visual dessa imagem, Carmem usou múltiplos signos saídos do universo simbólico dos terreiros e cantados por ela nos versos de “O que é que a baiana tem?”, de 1939:

 
 
 
À esquerda, uma quartinha levada (sobre a cabeça) pelas filhas e mães-de santo para a lavagem da escadaria da igreja de Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador, BA. À direita, Carmen Miranda, cuja imagem ficaria marcada pelo uso do turbante ornamentado,, peça que sempre cobriu sua cabeça , estilizado em inúmeras formas.
 
 
O que é que a baiana tem?
O que é que a baiana tem?
Tem torço de seda tem!


Tem brincos de ouro, tem!
Corrente de ouro, tem!
Tem pano-da-costa, tem!
Tem bata rendada, tem
Pulseira de ouro, tem!
Tem saia engomada
Tem sandália enfeitada, tem!
Tem graça como ninguém
Como ela requebra bem!

Quando você se requebrar
Caia por cima de mim

O que é que a baiana tem?

Tem torço de seda, tem!
Tem brincos de ouro tem!
Corrente de ouro tem!
Tem pano-da-costa, tem!
Sandália enfeitada, tem!
Só vai no Bonfim quem tem
O que é que a baiana tem?
Só vai no Bonfim quem tem
Só vai no Bonfim quem tem

Um rosário de ouro,
Uma bolota assim


Quem não tem balangandãs
Não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim.
 

 

 
 
 
 

Entre os recursos estilísticos usados por Carmem está a exageração de alguns elementos do traje típico da baiana filha-de-santo. As contas dos colares e pulseiras se tornam maiores em tamanho e número e o torço recebe adornos diversos, dos quais os mais conhecidos são as frutas tropicais. É quase como se ela própria representasse o Brasil e estes símbolos representassem a força da religiosidade de origem africana na constituição de nossa identidade. Outro recurso é a minimização dos volumes da saia (ajustando-a ao quadril) e da bata (encurtando-a para deixar ver a cintura) sublinhando as linhas do corpo e a sensualidade da dança. Podemos pensar numa diminuição daquilo que na roupa da baiana é de influência  portuguesa: as muitas e longas saias engomadas que escondiam o corpo feminino. Até os gestos com as mãos, que ficaram imortalizados em seus filmesVeja, entre outros, Banana da Terra (Direção de João de Barro, Sonofilmes / Metro Goldwyn Mayer, Brasil, 1939), Serenata Tropical (Down Argentine Way, Direção de Irving Cummings, 20th Century Fox, EUA, 1940) e Uma Noite no Rio (That Night In Rio, Direção de Irving Cummings, 20th  Century Fox20th Century Fox, EUA, 1941) lembram a dançaem que Oxum, a deusa do amor e da riqueza, levanta os braços e exibe dengosa e orgulhosamente as pulseiras e adornos que ela diz que tem . Por meio dessa imagem de baiana, associada ao ritmo contagiante de suas canções, geralmente acompanhadas pelo Bando da Lua - conjunto musical que se apresentava vestido com camisetas listradas e chapéus de palhinha, ou terno e chapéus brancos, trajes comumente usados pelos cariocas das classes pobres, às quais era associada a “malandragem” -, Carmem Miranda moldou uma imagem da “alma brasileira” de “natureza” mestiça e vibrante, reconhecível de norte a sul, como em "Diz que tem" (de Vicente Paiva e Aníbal Cruz, 1940)
 
 
 
 

 
Eram estes os 7 elementos do conjunto musical Bando da Lua, o primeiro no Brasil a harmonizar vozes e referência para os que vieram depois: Oswaldo Éboli, o Vadeco (pandeiro), Aloysio de Oliveira (violão), Hélio Jordão Pereira (violão), lvo Astolphi (banjo e violão-tenor) e os irmãos Afonso Ozório (ritmo e flauta), Stênio Ozório (cavaquinho) e Armando Ozório (violão). Em princípios de 1939, passaram a acompanhar Carmen Miranda no Cassino da Urca. Nos Estados Unidos tiveram disco nas paradas de sucesso, participaram de vários filmes e chegaram a gravar com o cantor Bing Crosby,. Ainda em 1939, lvo Astolphi retornou ao Brasil para se casar e foi substituído por Aníbal Augusto Sardinha (o Garoto). Este volta ao Brasil em1940, e assume seu lugar Nestor Amaral. Em 1944, sai Vadeco..A troca de elementos, daí por diante, foi constante. Nos últimos tempos, o grupo estava reduzido a quatro integrantes: Aloysio de Oliveira (o último remanescente), Aloísio Ferreira Lulu (violão), Harry Vasco de Almeida (piston e ritmo) e José Soares (pandeiro). Com a morte de Carmen, em 1955, extinguiu-se o Bando da Lua. Fonte:.http://carmen.miranda.nom.br
 
 
 

Ela diz-que-tem, diz-que-tem
Diz-que-tem, diz-que-tem
Diz-que-tem, diz-que-tem, diiz-que-tem,
Tem cheiro de mato, tem gosto de côco
Tem samba nas veias, tem balangandãs
Ela diz-que-tem, diz-que-tem
Diz-que-tem, diz-que-tem
Diz-que-tem, diz-que-tem, diiz-que-tem,
Tem pele morena e o corpo febril
e dentro do peito o amor do Brasil
Cantei em São Paulo, cantei no Pará
Tomei chimarrão e comi vatapá
Eu sou brasileira, meu todo revela
que a minha bandeira é verde-amarela
Eu digo que tenho, que tenho muamba
Que tenho no corpo um cheiro de samba
Só falta prá mim um moreno fagueiro
que seja do samba e bom brasileiro.

 
 
A familiaridade com a magia também foi outro tema cantado por Carmem Miranda em diversas músicas. Na letra do samba “Etc.” (de Assis Valente, 1933), essa familiaridade se expressa nos versos destacados:
 
 
Bahia, que é terra do meu samba
Quem nasce na Bahia é bamba, é bamba,
Bahia, terra do poeta,
Terra do doutor e "etecetra".
Eu tenho também o meu valor
(Ora se tenho)
E vivo com muita alegria,
O samba é meu avô,
macumba é minha tia,
Sou prima do grande violão
Sou bamba no batuque e no pandeiro,
Meu pai é o homem da muamba,
O grande e conhecido candomblé (Bahia)
 
 
Outro tema escolhido por ela e que tem íntima relação com o candomblé foi o da comida vendida pelas baianas, que incluía os mesmos quitutes oferecidos aos orixás e conhecidos como “comida de santo”. Nos tabuleiros das baianas havia o acarajé com vatapá (comida votiva que se oferece a Iansã), a canjica, o ekô, o ebô e o mungunzá (de Oxalá), o abará (de Xangô), o amalá ou caruru (de Xangô e de Ibeji), entre outras. Os nomes dessas comidas, anunciados pelas baianas, muitas vezes em forma de pregão, aparecem em várias letras cantadas por Carmem Miranda, inclusive no título, como acontece em “Canjiquinha quente e “A preta do acarajé”. A mais conhecida delas, no entanto, foi “No tabuleiro da baiana”, de Ary Barroso, gravada em 1936 juntamente com Luiz Barbosa:
 
 
No tabuleiro da baiana tem
Vatapá, oi, caruru,
Mungunzá, oi, tem umbu...
pra ioiô.
Se eu pedir você me dá
O seu coração
Seu amor de iaiá?
No coração da baiana tem
Sedução, oi, canjerê,
Ilusão, oi, candomblé
Pra você
Juro por Deus,
pelo Senhor do Bonfim,
Quero você
baianinha, inteirinha pra mim
E depois, o que será de nós dois?
Teu amor é tão fugaz, enganador.
Tudo já fiz,
fui até num canjerê,
Pra ser feliz,
meus trapinhos juntar com você
E depois?
Vai ser mais uma ilusão
No amor quem governa é o coração
 
 
Carmem Miranda gravou muitas composições do baiano Dorival Caymmi, que também cantou suas próprias canções com grande aceitação nacional. Além da Bahia, os temas da vida litorânea, do cotidiano dos pescadores, dos mistérios do mar e da religiosidade a eles associada, como a devoção a Iemanjá, aparecem em alguns dos mais líricos versos da música popular brasileira. É o caso de “É doce morrer no mar” (1943) e “Quem vem pra beira do mar” (1954). Em “Dois de fevereiro” (1957), título que se refere à comemoração de Nossa Senhora dos Navegantes, associada à Iemanjá, Caymmi mostra a profunda devoção à deusa do mar e registra uma das mais populares festas baianas.
 
 
Chegou, chegou
Afinal o dia dela chegou
Dia dois de fevereiro
Dia de festa no mar
Eu quero ser o primeiro
Pra salvar Iemanjá
Escrevi um bilhete a ela
Pedindo pra ela me  ajudar
Ela então me respondeu
Que eu tivesse paciência de esperar
O presente que eu mandei pra ela
de cravos e rosas vingou
Chegou, chegou, chegou
Afinal que o dia dela chegou
 
 
Dorival Caymmi foi um dos responsáveis, também, pela introdução de vários artistas, posteriormente, no universo do candomblé, do qual fazia parte na honrosa condição de ministro (obá) de Xangô  do terreiro baiano Axé Opô Afonjá. "Canto de Obá"  (gravado por ele em 1972, com letra de  Jorge Amado, também obá de Xangô), expressa essa condição e a reverência aos orixás como deuses do povo:
 
 
Meu pai Xangô,
é meu pai Xangô (repete várias vezes)
Protege teu filho Obá de Xangô
Seu Obá Otum OniKoyiOs obás de Xangô são ogãs, considerados ministros deste orixá, escolhidos entre celebridades, do mundo religioso ou não, que têm como atribuição auxiliar o culto de Xangô e estabelecer relações  diplomáticas com a comunidade. O termo Oba Otum Onikoyi refere-se ao cargo ocupado pelo compositor como um dos doze obás do terreiro Axé Opô Afonjá.
Que tanto precisa, precisa de ti
Pro canto compor
Pra tanto cantar
O canto em louvor
Das graças da flor
Da terra, do povo e do mar da Bahia
Protege teu filho
Teu filho Caymmi


Dorival Obá Onikoyi
Stella Caymmi
A mãe de Dori
De Nana e Danilo
Que é musa e mulher
que é amor e amiga
Stella estrela
Da minha cantiga
Amor recebi ai
Por ser teu Obá,
Obá Onikoyi
Por não merecer
Ser merecedor
De tanta Stella
Estrela de amor
 
 

 


Entre as décadas de 1930 e 1950 o crescimento das indústrias fonográfica e cinematográfica e da radiodifusão trouxe consigo um grande impulso na produção da música popular brasileira. Neste contexto as referências ao universo religioso afro-brasileiro cresceram e praticamente todos os grandes intérpretes gravaram alguma canção aludindo ao tema. Orlando Silva gravou “Despacho” (de Ari Barroso), em 1940, e "Feitiçaria" (de Custódio Mesquita e Evaldo Rui), em 1954; Linda Batista, em 1941,  gravou "Batuque no Morro" (de Russo do Pandeiro e José de Sa Roris), de  Dircinha Batista gravou “Salve Ogum” (de Mário Rossi e Pernambuco), em 1948 e "Macumba Gegê" (de Sinhô), em 1950; Dalva de Oliveira gravou “Babalú”Nome do orixá Obaluaiê em Cuba(de Margarita Lecuona e Humberto Porto, em 1943); gravada também por Ângela Maria, em 1958, e Luiz Gonzaga, “Rei Bantu” (dele e Zé Dantas, em 1950), entre outros.

 
A letra de “Pisei num despacho” (1947), de Geraldo Pereira e Elpídio Viana, interpretada inicialmente por Ciro Monteiro e regravada por Roberto Silva (1963) e Jackson do Pandeiro (1981), é ilustrativa da relação entre as religiões afro-brasileiras e o universo da música popular desse período ao contar as conseqüências negativas, para um sambista, de um incidente envolvendo um tabu religioso.
 
 
Desde do dia em que passei
Numa esquina e pisei num despacho
Entro no samba meu corpo tá duro
Bem que procuro a cadência e não acho
Meu samba e meu verso não fazem sucesso
Há sempre um porém
Vou à gafieira fico a noite inteira
No fim não dou sorte com ninguém
Mas eu vou num canto
Vou num pai-de-santo
Pedir qualquer dia
Que me dê uns passes
Uns banhos de erva e uma guia
Está aqui no endereço
Um senhor que eu conheço
Me deu há três dias
O mais velho é batata
Diz tudo na exata
É uma casa em CaxiasReferência a Duque de Caxias, município da Baixada Fluminense, célebre pela grande quantidade de templos afro-brasileiros, citados pela  literatura antropológica sobre macumbas.
 


Nesse período as músicas abordam a religiosidade afro-brasileira em termos de seu caráter exótico, instrumental e misterioso. Esse universo, nas letras das músicas, aparece ainda desorganizado e fragmentado, mas deixando-se pressentir pelas alusões, pelo ritmo, pelo tom, pelas entrelinhas.

 
Nas décadas seguintes essa religiosidade, impulsionada pela crescente visibilidade adquirida pela umbanda no sudeste, e pela continuada e crescente tematização do candomblé, sobretudo nos meios artístico e acadêmico, foi, aos poucos, conquistando legitimidade entre as classes médias e brancas sendo cantada em novas versões.


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