Upa, Neguinho!

Nos anos de 1960, a música popular brasileira se encontrava num ponto privilegiado de seu desenvolvimento. Absorvendo musicalidades de várias origens e gêneros (como o rock, pop, black music, baladas italianas, etc.) e diversificando seus próprios caminhos, surgem os movimentos da Bossa Nova, Jovem Guarda, Tropicalismo, a música de protesto e de vanguarda dos Festivais, entre outros. Os elementos das religiões afro aparecem na músicas de praticamente todos esses movimentos. Mesmo na Jovem Guarda, de influência norte-americana, que reuniu algumas tendências musicais como o rock e o iê-iê-iê, em um dos seus sucessos nacionais, “Feitiço de broto”, de Carlos Imperial, gravado em 1966, ouvia-se, na voz de Rosemary, conhecida como “a fada loira”, os versos:

 

Sexta-feira enluarada
Bem na sua encruzilhada
Um feitiço novo eu vou botar
Meu feitiço vai ser forte
Vai mudar a minha sorte
Vai fazer você de mim gostar
Uma rosa amarela,
dentre todas a mais bela,
para o meu feitiço enfeitar
Vou pedir ao pai-de-santo
Muita reza em seu quebranto
E fazer você pra mim voltar
 

Oxalá vai me ajudar
 

Sendo broto então eu acho
Moderninho o meu despacho
Eu garanto que não vai falhar
Amarrei o seu retrato
No bigode do meu gato
Ele não parou mais de miar
Suas cartas eu rasguei
E os retratos eu joguei
Onde você vai ter que passar
Vou pedir ao pai-de-santo
Muita reza em seu quebranto
E fazer você pra mim voltar
Oxalá vai me ajudar.


 

A partir de 1964 com a instauração do Regime Militar, o meio artístico musical mais engajado politicamente usou os temas da religiosidade afro-brasileira como forma de falar às classes populares, seja em termos de potencial de união e mobilização que essas religiões possibilitam, seja como referência para ação transformadora mais efetiva. Em “Dia de Festa”, composta pelos militantes esquerdistas Geraldo Vandré e Moacyr dos Santos, a devoção a Iemanjá aparece como catalisador das esperanças em dias melhores:
 
 
 

Hoje é dia de festa
Todos vão se encontrar
Toda dor, todo pranto
Hoje vai se acabar
Vai sentir a beleza
Joga as flores no mar
Deixa toda tristeza
No seio de Iemanjá
Vai que Nossa Senhora
Pode nos proteger
Vai e não te demora
Que já vai manhecer
Vai e volta contente
Todos vão te esperar
Traz amor pra essa gente
Cá na beira do mar
Em “Upa, Neguinho”, canção de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, composta para a peça “Arena Conta Zumbi” (encenada no contestador Teatro de Arena de São Paulo, em 1964), a capoeira, a magia e a valentia são vistas como formas negras de luta, mesmo quando a liberdade só possa ser vislumbrada.
 
 
 
Upa!, neguinho na estrada
Upa!, pra lá e pra cá
Virge, que coisa mais linda!
Upa!, neguinho começando a andá

Começando a andá,
começando a andá
E já começa a apanhá

Cresce, neguinho e me abraça
Cresce e me ensina a cantá
Eu vim de tanta desgraça
Mas muito te posso ensiná
Capoeira, posso ensiná
Ziquizira, posso tirá
Valentia, posso emprestá
Mas liberdade só posso esperá.


 

É interessante notar, ainda, nessa música, o diálogo entre o passado e futuro dos negros no Brasil. A utilização de expressões como “ziquizira” (termo que na umbanda significa feitiço) e a omissão de erres no final das palavras (“ensiná” em vez de “ensinar”, por exemplo), incomum em gravações da época, indicam a opção por um tipo popular de fala que pode ser associada à linguagem e à experiência dos pretos-velhos, concebidos na umbanda como espíritos de ex-escravos. Com sua magia e ensinamento, eles orientam os necessitados com aconselhamento e esperança.

 Outras letras, contudo, expressam pontos de vista mais aguerridos como formas de ação para modificar a realidade social. Na letra de “Esse mundo é meu” (de Sergio Ricardo e Ruy Guerra), Ogum, o orixá guerreiro, é saudado e invocado, na voz marcante de Elis Regina e Jair Rodrigues, para combater a escravidão em todos os sentidos e se apropriar do “mundo para todos”.
 
 

Esse mundo é meu!
Esse mundo é meu!

Escravo do reino em que sou
Escravo do mundo em que estou
Mas acorrentado ninguém pode
amar
Mas acorrentado ninguém pode
amar

Saravá, Ogum!
Mandinga pra gente continua
Cadê o despacho pra acabar?
Santo guerreiro da floresta,
Se você não vem, eu mesmo vou
brigar
Se você não vem, eu mesmo vou
brigar.

O vento
Que venta aqui
É o vento
Que venta lá
De volta
Pro mandingueiro
A mandinga de quem mandingar


 

Da mesma época, “Maria Moita”, canção de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, feita para o musical “Pobre menina rica”, também pede a interferência de Xangô, orixá da justiça, contra as desigualdades sociais:
 
 

Nasci lá na Bahia
De Mucama com feitor
Meu pai dormia em cama
Minha mãe no pisador
Meu pai só dizia assim:. venha cá
Minha mãe dizia sim, sem falar
Mulher que fala muito perde logo seu amor

Deus fez primeiro o homem
A mulher nasceu depois
Por isso é que a mulher
Trabalha sempre pelos dois
Homem acaba de chegar, tá com fome
A mulher tem que olhar pelo homem
E é deitada, em pé, mulher tem é que trabalhar

O rico acorda tarde
Já começa a rezingar
O pobre acorda cedo
Já começa a trabalhar

Vou pedir pro meu babalorixá
Pra fazer uma oração pra Xangô
Pra pôr pra trabalhar
Gente que nunca trabalhou.


 

A cosmologia dos orixás, associada a categorias culturais, como a guerra, justiça, valentia etc., em “Canto de Ossanha” (de Baden Powell e Vinícius de Moraes) foi usada nos anos de 1960 de forma emblemática. O canto desse orixá, tido como feiticeiro e mestre na arte da ilusão, serviu como advertência contra os vários discursos e promessas pelos quais não se deve deixar seduzir.
 
 

O homem que diz: dou,
não dá
Porque quem dá mesmo
não diz
O homem que diz: vou,
não vai
Porque quando foi já
não quis
O homem que diz: sou
não é
Porque quem é mesmo é
“não sou”
O homem que diz: tô,
não tá
Porque ninguém
tá quando quer
Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha traidor
Coitado do homem que vai
atrás de mandinga de amor

Vai, vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, vai, não vou
Que eu não sou ninguém de ir
em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Não, eu só vou se for pra ver
uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
 

Amigo, senhor, saravá
Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha,
não vá
Que muito vai se arrepender
Pergunte pro seu orixá
Amor só é bom se doer .


 
 

É nessa época também que surgem “Os Afro-sambas”, num disco considerado um marco da presença das religiões afrobrasileiras na MPB. Reunindo um conjunto de músicas de inspiração religiosa, compostas por Baden Powell e Vinícius de Moraes, nele constam, entre outros, cantos aos orixás (Exu, Ossanha, Xangô e Iemanjá), ao caboclo Pedra-PretaCaboclo do pai-de-santo baiano Joãozinho da Goméia, famoso no Rio de Janeiro neste período (veja Lody e Silva, 2002). e à pombagira Labareda. Esse disco surgiu a partir de uma viagem de Baden Powell a Salvador onde se impressionou com os toques de berimbau e a musicalidade dos terreiros. Reinterpretou para o violão os ritmos aprendidos, em composições às quais Vinícius de Moraes acrescentou letra. Para Vinícius, o contato com os ritos e ritmos do candomblé por meio de Baden Powell representou uma virada em sua trajetória marcada pelo mundo de classe média urbana carioca de onde surgira a Bossa Nova (Castelo, 1994:252).

 A aproximação destes conceituados artistas do universo religioso afrobrasileiro ampliou sua visibilidade e legitimidade a partir da década de 1960, momento em que estas religiões conquistavam novos espaços, sobretudo entre a classe média dos centros urbanos. No final desta década surgiu, por exemplo, o LP “Gente da antiga, Pixinguinha, João da Baiana e Clementina de Jesus”, reunindo um conjunto de regravações de músicas inspiradas em ritmos e temas de terreiros como “Yaô” e “Mironga de moça branca”Mironga ou milonga significa feitiço, conflito, briga..
 
 

Vinícius de Moraes, dizendo-se “o branco mais preto do Brasil” e pedindo a bênção a um “Brasil branco, preto, mulato, lindo como a pele macia de Oxum”Versos de Samba da Bênção, de Vinícius de Moraes e Baden Powell (1963)., exemplificava a possibilidade de conversão da classe alta, escolarizada e branca, a uma religião até então tida como de negros e pobres. Em parceria com Toquinho, compôs, nas décadas seguintes, muitas letras sobre os orixás e seus ritos. Em “Meu pai Oxalá”, Vinícius narra a desilusão amorosa por meio do mito da traição de Iansã (deusa das tempestades) que seduz Xangô (deus do trovão), irmão de seu marido, Ogum. É como se o poeta sentisse a tristeza de Ogum (impiedoso deus da guerra), que chora diante da morte deste amor, representada pelas figuras de Obaluaiê e Omolu (avatares associados às doenças e aos cemitérios). A cena da traição se passa durante o ritual das Águas de OxaláEste ritual rememora o mito no qual Oxalufã (avatar velho de Oxalá) é preso por engano no reino de seu amigo Xangô, causando um período de infortúnios ao lugar. Ao saber disso, Xangô liberta seu amigo ordenando aos seus súditos que fossem, vestidos de branco e em silêncio em sinal de respeito, buscar água três vezes seguidas a fim de lavar Oxalá. Essa cerimônia revive este episódio (Veja Verger, 1981:260), no qual as filhas-de-santo em procissão carregam quartinhas brancas com água para lavar os assentamentos (representações materiais) de Oxalá. O poeta  invoca a natureza dos orixás e de seus elementos naturais para delinear as emoções do drama:
 
 
 

Atotô, Obaluaiê!
Atotô, Babá!

Vem das Águas de Oxalá
Essa mágoa que me dá
Ela parecia o dia
Ao romper da escuridão
Linda no seu manto todo branco
Em meio à procissão
E eu que ela nem via
Ao deus pedia amor e proteção

Meu pai Oxalá é o rei
Venha  me valer!
Meu pai Oxalá é o rei
Venha  me valer!
E o velhoOmolu
Atotô, Obaluaiê!

Que vontade
de chorar
No Terreiro de Oxalá
Quando dei com a minha ingrata
Que era filha de Iansã
Com a sua espada cor de prata
Em meio à multidão
Cegando Xangô num balanceio
Cheio de paixão

Meu pai Oxalá é o rei
Venha  me valer!
Meu pai Oxalá é o rei
Venha  me valer!
E o velho Omolu
Atotô, Obaluaiê!

Atotô, Obaluaiê!  Atotô, Babá!


 
 
 
 

O deslumbramento do poeta com o mundo do candomblé se expressa também no samba  “A bênção, Bahia”,  em que as mães-de-santo Senhora, do terreiro Opô Afonjá, Menininha, do Gantois, e Olga, de Alaketo, são saudadas ao lado dos orixás:
 
 
 

Olorô  Bahia!
Nós viemos pedir sua bênção, saravá!
Eparrei, meu guia!
Nós viemos dormir no colinho de Iemanjá
Nanã Boroko fazer um bulandê
Efó, caruru e aluá
Pimenta bastante pra fazer sofrer
Bastante mulata pra amar
Fazer juntó
Meu guia, ê
Seu guia, ê
Bahia!
Saravá, Senhora!
Nossa mãe foi se embora pra sempre do Afonjá
A rainha agora
É Oxum, é a mãe Menininha do Gantois
Pedià mãe Olga de Alakêto, ê
Chama Iansã para dançar
Xangô, rei Xangô, kabuecielê!
Meu pai OxaláSobre seu pai Oxalá Vinícius de Moraes compôs o Canto de Oxalufã (1972), cujo conteúdo da letra  versa sobre o orixá da criação,  vida e sabedoria a ele atribuídas nas religiões afro-brasileiras: Você que sabe demais/ Meu pai mandou lhe dizer/ Que o tempo tudo desfaz/ A morte nunca estudou/ E a vida não sabe ler/ Porque amor/ Não dá pra ninguém saber/ Por que é que há / Quem lê e não sabe amar/ Quem ama e não sabe ler?/ Você que sabe demais/ Mas que não sabe viver/ Responda se for capaz:/ Da vida, quem sabe mais?/ Da morte, quem quer saber?, Epa Babá!
A bênção, mãe
Senhora mãe
Menina mãe
rainha!

 

Em outra  canção, “Maria vai com as outras”, Vinícius e Toquinho contam o caso de uma filha-de-santo do terreiro do Gantois que, por esquecer de levar perfume e flores para o seu orixá, Iemanjá, é punida com a perda de seu amor. Os orixás são complacentes com as fraquezas humanas, mas nem sempre perdoam quem se esquece de cultuá-los.
 
 
 

Maria era uma boa moça
pra turma lá do Gantois
Era maria-vai-com-as-outras
Maria de coser,
Maria de casar
Porém o que ninguém sabia
É que tinha um particular
Além de coser,
além de rezar
Também era Maria de pecar
 

Tumba-ê, cabô,
tumba lá e cá
Tumba-ê, guerreiro,
tumba lá e cá
Tumba-ê, meu pai,
tumba lá e cá
Não me deixe só
 

Maria que não foi com as outras
Maria que não foi pro mar
No dia dois de fevereiro
Maria não brincou
na festa de Iemanjá
Não foi jogar água-de-cheiro
Nem florespra sua orixá
Aí, Iemanjá
pegou e levou
O moço de Maria para o mar.
 
 

Tumba-ê, cabô,
tumba lá e cá
Tumba-ê, guerreiro,
tumba lá e cá
Tumba-ê, meu pai,
tumba lá e cá
Não me deixe só
 

Até hoje ainda se fala
Nas rodas lá do Gantois
Que triste era de ver Maria
Na sala onde ela ia
Pra se manifestar
A gente ainda se admira
Seu gira gira sem parar
Maria girou
Deixa-la girar
E a turma não parava de cantar
 

Tumba-ê, cabô,
tumba lá e cá
Tumba-ê, guerreiro,
tumba lá e cá
Tumba-ê, Iemanjá,
tumba lá e cá
Não a deixe só


 

No final da década de 1960, o considerável aumento do número de músicas que usavam de alguma forma termos do universo religioso afrobrasileiro constituiu um amplo repertório que, visto em conjunto, pode ser entendido como uma forma de “pedagogia” das religiões afrobrasileiras. Esse processo, que se prolongou pelas décadas seguintes, estendeu para a sociedade, pelos meios de comunicação que também se expandiam rapidamente, signos, símbolos, valores, códigos, preceitos, enfim, termos da cultura religiosa proveniente do mundo dos terreiros constituindo, desse modo, palavras-chaves para a compreensão destas crenças.

 Este veio passou, então, a ser explorado por diferentes setores da música popular. Por exemplo, em “Só o Ôme”, de Edenal Rodrigues,  interpretado por Noriel Vilela e incluída no álbum "Eis o Ôme" (1968, Copacabana Records), a letra reproduz uma consulta de Preto-Velho, que ensina a um consulente, em sua linguagem típica, como desfazer um feitiço. Este só pode ser desfeito por Exu (o “Home”) dono da  encruzilhada  onde deve ser depositada a oferenda de uma garrafa de marafo (cachaça). A letra explica as razões do feitiço (uma “candonga”, isto é, uma intriga, uma fofoca) e mostra que nas religiões afro-brasileiras, diferentemente de outras religiões, é possível conseguir ajuda, mesmo quando não se teve um comportamento “exemplar”. A letra dessa música explicita detalhadamente como “desfazer” uma “ziquizira” como a mencionada anteriormente em “Upa , Neguinho!”.
 
 
 

Ah, mo fio do jeito que suncê
Só “o ôme que pode te ajudá
Ah, mo fio do jeito que suncê
Só “o ôme”  é que pode te ajudá
 

Suncê compra um garrafa de marafo
Marafo que eu vai dizê o nome
Meia-noite suncê na encruziada
Destampa a garrafa e chama “o ôme”
O galo vai cantá, suncê escuta
Reia tudo no chão que tá na hora
E se gualda notuno vim chegando
suncê óia pra ele que ele vai andando
 

Ah, mo fio do jeito que suncê
Só “o ôme que pode te ajudá
Ah, mo fio do jeito que suncê
Só “o ome” é que pode te ajudá
 

Eu estou ensinando isso a suncê
Mas suncê num tem sido muito bão
Tem sido mau fio, mau marido
Inda puxa-saco de patrão
Fez candonga de cumpanheiro seu
Ele botô feitiço ni  suncê
Agora só “o ôme” à meia-noite
É que seu caso pode resolvê!


 
 

Segundo Liana Dantas, neta do compositor Edenal Rodrigues, a música "Promessado" é uma resposta a "Só o Ôme". No mesmo álbum há mais canções com referências religiosas afro-brasileiras, como "Saravando, Xangô", "Meu Caboclo não Deixa", "Eu tá vendo no copo", "Acredito, sim" e outras.
 

Essa “pedagogia” das religiões afrobrasileiras teve, na década de 1970, dois grandes “mestres”: Clara Nunes e Martinho da Vila, que gravaram os maiores sucessos entre as músicas com esse tema.
 
 
 
 
 

Macumba lá minha casa tem galinha preta, azeite de dendê.
 

Clara Nunes surgiu como uma espécie de “reedição” da baiana de Carmem Miranda, imprimindo-lhe um conteúdo religioso mais evidente. Apresentava-se, frequentemente, descalça e vestida de “filha-de-santo” estilizada, usando  saia rodada de renda branca, colares e figas, pulseiras e, na cabeça, diadema de conchas, palhas e flores.  “A Deusa dos Orixás” (de Romildo e Toninho), foi seu maior sucesso e, provavelmente, sua mais conhecida canção. Nela, conta-se uma versão do mito, já referido acima, que envolve o triângulo amoroso formado por Ogum, Iansã e Xangô. Nesta variante, Xangô vence a disputa e faz de Iansã a “rainha de sua coroa”.
 
 

-Iansã, cadê Ogum?
- Foi pro mar
- Mas, Iansã, cadê, Ogum?
- Foi pro mar
Iansã penteia os seus cabelos macios
Quando a luz da lua cheia
clareia as águas dos rios
Ogum sonhava com a filha de Nanã
E pensava que as estrelas
Eram os olhos de Iansã

-Iansã, cadê Ogum?
- Foi pro mar
- Mas, Iansã, cadê, Ogum?
- Foi pro mar

Na terra dos orixás
O amor se dividia
Entre um deus que era de paz
E outro deus que combatia
Como luta só termina
Quando existe um vencedor
Iansã virou rainha
Da coroa de Xangô


 
 

Em outro sucesso, Afoxé pra Logun (de Nei Lopes), Clara Nunes nos ensina quem é esse orixá: menino, filho de Oxóssi (deus das matas e da caça, que se veste de azul) com Oxum (deusa do ouro e dos rios). Considerado uma divindade que alterna sua existência, vivendo ora nas matas, ora nas águas doces dos rios, Logun expressa a fusão dos atributos de seus pais. Para conseguir o axé da beleza e da riqueza, do qual Logun é detentor, é preciso oferecer-lhe seus pratos preferidos, os mesmos que se oferecem a seus pais: axoxô e onjé (feitos de coco e milho), dedicados a Oxossi e omolucum (feito com feijão fradinho e ovos), dedicado a Oxum. O ritmo desta canção é o ijexá, ao som do qual Logun dança nos terreiros, sendo saudado com a expressão: “Fara , Logun! ”.
 
 
 

Menino caçador
Flecha no mato bravio
Menino pescador
Pedra no fundo do rio
Coroa reluzente
Todo ouro sobre azul
Menino onipotente
Meio Oxóssi, meio Oxum
 

É, é, é é
Quem é que ele é?
Ah, ah, ah, ah
Onde é que ele está?
Axé, menino, axé!
Fara Logun!, Fara Logun !
 

Menino, meu amor
Minha mãe, meu pai, meu filho
Toma teu axoxô
teu onjé de coco e milho
Me dá o teu axé
Que eu te dou teu mulucum
Menino doce mel
Meio Oxóssi, meio Oxum.


 

Cantando a temática afrobrasileira, Clara Nunes, inevitavelmente, aproximou-se da infinidade de elementos mágicos presentes nas práticas místicas do cotidiano brasileiro. A música “Banho de manjericão”, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, mostra uma síntese das mais conhecidas maneiras de se livrar do mal e obter proteção:
 
 

Eu vou me banhar
De manjericão
Vou sacudir a poeira do corpo batendo com a mão
E vou voltar
lá pro meu congado
Pra pedir pro santo pra rezar quebranto e cortar mau-olhado
Eu vou bater na madeira três vezes com o dedo cruzado
Vou pendurar uma figa no aço do meu cordão
Em casa um galho de arruda é que corta
Um copo d’água no canto da porta
A vela acesa e uma pimenteira no portão [...]
E com vovó Maria que tem simpatia pra corpo fechado
É com Pai Benedito que benze os aflitos com o toque de mão
E Pai Antônio cura desengano e tem a reza de São Cipriano
E tem as ervas que abre os caminhos pro cristão.

 
 

Clara Nunes gravou muitos sucessos neste gênero, tendo sido “a primeira brasileira a ultrapassar a cifra de cem mil discos vendidos, quebrando um velho tabu [...das]  gravadoras” (Severiano e Mello, 1999:160). A marca de sua obra é o elogio à mestiçagemUtilizava, freqüentemente este tema em seus trabalhos como no LP Brasil Mestiço (1980) e no show Clara Mestiça (1981)., à natureza brasileira e exaltação do misticismo de origem africana. Além do reconhecimento nacional, teve acolhimento pelo povo-de-santo como uma autêntica porta-voz de sua visão de mundo. Sua morte, em 1983, em razão de uma complicação cirúrgica, foi interpretada pelo povo-de-santo como conseqüência de feitiços e/ou punição religiosa por quebra de princípios rituais.
 

 Martinho da Vila surgiu nesse período enfatizando, desde os seus primeiros sucessos, os valores da ascendência africana no Brasil. Sua perspectiva se tornou, com o passar do tempo, a de um uso político afirmativo desses valores. Em “Casa de Bamba”, de 1969, uma prática estigmatizada das religiões afrobrasileiras (“macumba com galinha preta e azeite de dendê”) é  assumida com orgulho ao lado da alegria do samba, da devoção aos santos católicos e da solidariedade nos bons e maus momentos.
 
 
 

Na minha casa todo mundo é bamba
Todo mundo bebe todo mundo samba
Na minha casa não tem bola pra vizinha
Não se fala do alheio, nem se liga pra Candinha

Na minha casa todo mundo é bamba
Todo mundo bebe todo mundo samba
Na minha casa ninguém liga pra intriga Todo mundo xinga, todo mundo briga

Macumba lá minha casa
Tem galinha preta, azeite de dendê
Na ladainha lá da minha casa
Tem reza bonitinha e canjiquinha pra comer

Se tem alguém aflito
Todo mundo chora, todo mundo sofre
Mas logo se reza pra São Benedito
Pra Nossa Senhora e pra Santo Onofre
Mas se tem alguém cantando
Todo mundo canta, todo mundo dança
Todo mundo samba e ninguém se cansa
Pois minha casa é casa de bamba


 

Martinho também levou para fora dos terreiros pontos (cantigas) de umbanda que louvam Exu, Caboclos, Pombagiras e outras entidades. A música ‘Festa de Umbanda”, de 1969, reuniu alguns deles:
 
 

O sino da igrejinha
Faz belém bem blão
Deu meia-noite
O galo já cantou
Seu Tranca-Rua
Que é dono da gira
Oi corre gira
Que Ogum mandou
- Laroiê Exu!
- Exu ê!Ponto de Exu
 

Tem pena dele
Benedito tenha dó
Ele é filho de Zambi
Ô, São Benedito tenha dó
Tem pena dele Nanã
Tenha dó
Ele é filho de Zambi
Ô, Zambi tenha dóPonto de Nanã
 

Foi numa tarde serena
Lá nas matas da Jurema
Que eu vi o caboclo bradar
Kiô! kiô  kiô kiô kiera
Sua mata está em festa
Saravá, seu Sete Flechas
Que ele é rei da floresta
 

Kiô! kiô  kiô kiô kiera
Sua mata está em festa
Saravá, seu Mata Virgem
Que ele é rei da floresta
 

Kiô! kiô  kiô kiô kiera
Sua mata está em festa
Saravá, seu Cachoeira
Que ele é rei da florestaPonto dos Caboclos Mata Virgem e Cachoeira
- Okê, caboclo!
- Okê!
 

Vestimenta de caboclo
É samambaia
É samambaia, é samambaia
Vestimenta de caboclo
É samambaia
É samambaia, é samambaia
Saia, caboclo
Não me atrapaia
Saia, do meio
Da samambaiaPonto de chamamento de Caboclo


 

São dele, também, as músicas “Camafeu”, de 1971, em homenagem ao famoso capoeirista baiano Camafeu de Oxossi, e “Jubiabá”, de 1972, provavelmente a primeira canção intitulada com o nome de um pai-de-santo. O nome deste sacerdote, que viveu na Bahia, foi título anteriormente de um dos mais famosos romances de Jorge AmadoEste romance publicado em 1935 foi posteriormente filmado por Nelson Pereira dos Santos (1985) com trilha sonora composta por Gilberto Gil da qual consta a canção também intitulada Jubiabá. .
 
 

O homem tem dois olhares
Um enxerga e o outro vê

Tem o olho da maldade
E o olho da piedade
Tem que ter olho bem grande
Pra poder sobreviver

Jubiabá, ô, Jubiabá
Faz um feitiço bem feito
Pra minha nega voltar

Jubiabá, ô, Jubiabá
No morro do Capa-Nego
Quero lhe cambonearAuxiliar uma entidade espiritual durante sessão de atendimento aos fiéis.

Se secar o olho da maldade
O homem vai sofrer
Sem entender a ruindade do mundo
Que seu lado bom vai ver
E sem o olho da piedade
Vai fazer gente sofrer
Magoar, ferir, sem refletir
E bem mais cedo vai desencarnar
Subir

Jubiabá, ô, Jubiabá
Faz um feitiço bem feito
Pra minha nega voltar

Jubiabá, ô, Jubiabá
No morro do Capa-Nego
Quero lhe cambonear
 

Quero meus olhos abertos
Quero bem longe enxergar
Vendo o errado e o certo
Posso diferenciar [...]


 

Essa letra se refere aos ensinamentos de Pai Jubiabá sobre os “dois lados do homem”, revelando a cosmovisão das religiões afrobrasileiras  na qual o bem e o mal constituem valores morais relativos, simétricos e complementares. O bem que se pede aos orixás, por exemplo, pode vir a ser o mal de alguém. E mesmo o mal presente pode tornar-se um bem futuro. Saber reconhecer a bondade e a maldade humanas é fundamental para nortear as escolhas que se faz. Para estas religiões, privilegiar apenas um dos lados pode levar ao engano ou ao sofrimento, uma vez que o ser humano é ambíguo e só pode ser visto de uma perspectiva também dual.